terça-feira, agosto 25, 2009

RETOMANDO


oLA, depois de longo tempo sem postar nada, talvez porue tivesse um pouco ocupado ou desocupado com outras tarefas, mas é bom que a qualidade das coisas podem ser melhor observadas e discutidas.

Uma das reflexões em que me meti foram a Crítica Teatral, a partir do curso 2008\2009 na ELT com o Kil Abreu.

Um destes resultados quero compartilhar. É um ensaio sobre a peça e a encenação do "O Quarto", de Harold Pinter, com encenação Club Noir.


Ensaio : O universal na dramaturgia de Harold Pinter e o Particular na encenação d’O Quarto pela Cia Club Noir.

Uma situação particular para falar do universal, essa parece uma das propostas explícitas da dramaturgia de Harold Pinter, infusas principalmente no texto que é alvo da presente reflexão. As conjecturas entre texto e cena são feitas aqui por uma experiência de tempos diferentes que são a leitura do texto, apreensão maleável e reversível, e a experiência de espectador da representação, leitura de sucessão irreversível. Do caráter da interpretação do texto é que se pretende discutir, mas antes que se desenhe juízos de valor arbitrários e subjetivos sobre o texto e a encenação, tentarei dar valor mais ao confronto de qualidades positivas ou negativas (mas, sempre como qualidades) que se mostraram tangíveis no palco e texto.

O primeiro atrito criativo, latente, entre texto/cena é o tratamento das rubricas ou didascálias. Elas são o canal direto e performativo do dramaturgo para a encenação, ou ao leitor. A qualidade das rubricas que aparecem no texto são, majoritariamente, de indicações sobre os gestos, os movimentos, entradas e saídas. Detalham a movimentação espacial e ações objetivas sobre os objetos e pessoas. Historicamente esta qualidade é usual no “teatro naturalista”, conhecido em final do séc XIX, que “visa oferecer uma representação exata dos meios sociais dos personagens” (Dominique Maingueneau). A crítica a esse recurso está na vinculação passiva e conivente com a ideologia burguesa, que procura instituir os comportamentos e ações de indivíduos da classe dominante como representação fatalista, não-historicamente construída, e portanto, contraditoriamente reversível.

A literalidade do texto parece indicar um falso naturalismo, em contraposição à confusão estabelecida das lógicas argumentativas e de locuções (modo próprio de se expressar) dos personagens. Estas lógicas deveriam ser claras e mais ou menos facilmente perseguíveis pelo “contemplador do teatro naturalista”. A encenação desconfiou das indicações objetivas e embarcou pela opção de um jogo de cena enigmático e sensorial. A movimentação das personagens são deslocamentos nitidamente traçados no espaço, a relação acontece através de linhas e geometrias imaginárias. Essa atitude questiona a validade das rubricas e age determinante na chave da interpretação. Os intérpretes, principalmente a atriz Juliana Galdino, através da protagonista Rose, interiorizam as ações para tentar livrar o público da aceitação natural de seus gestos e ações. Exteriorizam uma não-representação. Espectros amortizados, estáticos, mínimos gestos. Articulam um exasperado jogo de enunciações que apelam ao nosso auditivo, tentam conduzir o público ao universo misterioso, onde deve-se buscar a recriação do que possa estar acontecendo naquela realidade específica proposta. Isso mostra o caráter de sugestão da representação, sua responsabilidade e característica de lançar uma mediação onde “tudo-não-está-dado” e sua jogar para o espectador a qualidade precípua de participatividade com a obra.

Interpretação do texto para a direção da peça e os atores, nesse tratamento, é deixar espaço para a apreensão do sentido parcial, incompleto e aberto. Tentativa de devolver aos expectadores um poder atrofiado da imaginação, da cumplicidade distanciada e desinteressada. Imagens que temos que recuperar, criar e preencher. Quão difícil parece ser essa nossa parte da responsabilidade no fenômeno artístico, se nos propusermos a cada solicitação da nossa imaginação tentar desviar das imagens completas e totalizantes que os monstros midiáticos bombardeiam e tornar com algo simples e infenso como resposta a nossa condição marchetada na sociedade.

Outro atrito criativo se estabelece na qualidade de tratamento do elemento da escuridão. O escuro é o que nos engole e é o que nos devolve às potências do imaginário. Depois do próprio quarto que dá nome ao universo da peça, o escuro parece ser o elemento central, o quarto contém seu buraco negro, é um sistema, complexo e irracional agindo. Imerso nele só podemos ser devotos da incerteza, tatear caminhos e objetos. Rose, a protagonista, em vez de irradiar pensamentos e ações, parece tragar, num imenso repuxo uma trama confusa de narrações, memórias e diálogos entrecortados. A entropia das preocupações cotidianas.

Quando a visão se compromete na vaga escuridão, o sentido privilegiado é o auditivo, vemos/enxergamos com os ouvidos. A inconsciência e o esquecimento das coisas não fazem desaparecer os objetos e circunstâncias que não compreendemos e mal absorvemos. Elas existem, habitam e atuam em algum lugar de nós, no escuro, depositadas, relegadas e quase inalcançáveis voluntariamente, prontas a emergirem do mais fundo, do mais distante, onde a luz só pode roçar, já fraca e débil.

Rose, como elemento central desse universo, se move e fala no espaço de modo atordoado, entre as preocupações com o marido, Bert, na iminência de sair em plena geada, a pilotar sua caminhonete e a tensão crescente que se constrói sobre as especulações de quem habita o porão do prédio. A sugestão virtual da materialidade do prédio revela que este é composto por andares inumeráveis, habitações de inquilinos, zelado pelo senhorio/proprietário, Sr. Kidd, uma espécie de agenciador e mantenedor da inconsciência do lugar. A relação de moradia entre morar no subsolo (“lá em baixo”) e os andares acima (“lá em cima”) remete a uma situação de aparente superioridade em comodidade, conforto e bem-estar. Nesse prédio, a altura, que distancia as pessoas, pode ser duplamente entendida. No sentido das diferenças de classe social e também em sentido das relações psicológicas indesejadas, evitadas, incontroladas e de curiosidade que habitam, trafegam e querem se comunicar: - “Quem é que vive lá embaixo?”, é a indagação que de início aparece e vai aquecer o ambiente com as especulações e vaga lembrança de Rose ter habitado o porão do prédio; lugar de úmida e sombria memória, capaz de incomodar a imaginação: pensar que alguém agora pode suportar habitar tal posição; é isuportável. O diagrama do prédio tem a parte inferior e superior um tanto desconhecidas e inacessíveis, configura-se como um mistério que reflete a derrelição da personagem e os limites da consciência humana.

“Este é um bom quarto. Num sítio assim temos hipóteses”, afirma Rose a sensação e a imanência do espaço, na sua segurança de pensar o quarto como invólucro protetor das incertezas exteriores: o frio e a umidade, por exemplo. Um quarto, uma mulher, o mundo alheio afora, seres que propõem a desestabilidade, desafiam a lógica e a disposição de se pensarem a si mesmo e suas relações . A superproteção do mundo interno; as necessidades de reafirmações sobre estarem num lugar sossegado, quente e tranqüilo; o zelo maternal e a confiança da condução sobre seu marido; as negações do chamado misterioso do pai; a violência, a agressividade e descontrole sobre tratar o mensageiro. Que poder é esse de nos tornarmos fantasmas da nossa própria existência, observar à espreita as relações das pessoas e coisas quando sua própria vida desmorona e te cobra.

Estamos na imanência do espaço associativo onde as intenções são da mais potente ambigüidade colateral, referem-se ao estrito das relações ficcionais e ao extenso universo das realidades subjetivas e universais do leitor e expectador.

A confiança de Rose no marido, como capacitado condutor de sua caminhonete, em meio a uma geada, parece indicar um caminho subjetivo da entrega do seu destino às conduções de seu companheiro. Ou um indício lato para a reflexão sobre a qualidade e quantidade da delegação que operamos para sermos conduzidos pelo outro em nossos destinos. E na reverberação dessa imagem: condutor/conduzido, somos seres guiados e guias, simultaneamente, de destinos alheios, numa estrada escorregadia e perigosa, à mercê de colisões e desastres.

O homem que habita o porão quer emergir e atormenta o senhorio que agencia o encontro conflituoso com Rose. Sua prefiguração como sendo negro e cego traz agravantes de preconceito histórico, internalizado na personagem, de raça e deficiência. As ofensivas são um ódio precedente, irracional e defensivo para evitar o confronto da mensagem que Riley é portador. Sua função de mensageiro e cego é mitologicamente comparado a Hermes e Tirésias, personagens mediadores de uma comunicação sem precedentes, detonadora, trágica sobre o destino do herói; ponto sem retorno; são também oniscientes da situação que os envolve e os reclama. Ao recado do Pai de Rose para que volte para a casa, sua resposta é forte e ao mesmo tempo vacilante: - “é tarde”, nesse ponto concentra o derradeiro ato trágico e remete ao chamado de Hamlet pelo fantasma de seu belicoso pai. Convite ao desvario, convocação desestabilizadora do espírito, contato com algo maior que sua existência, o sobrenatural, a entrada ao mundo do caos, a irrupção do impossível, a angústia da liberdade, a invasão da matilha de lobos.

A estrutura dramática do texto é de transcurso linear, começo meio e fim, composto de um plano em que a lógica das movimentações corresponde a uma mimética naturalista, mas uma estranheza ou ruído gerado pela lógica interna dos diálogos e intenções das personagens abalam o mundo aparentemente estático e controlado que a tessitura do texto propõe. É de extrema sutileza as inter-relações pessoais que elidem uma condição simbólica e significativa para além do câmbio individual que é acintosamente obscura incompleta para gerar identificação emocional e psicológica. O texto move-se por sugestões e brechas para promover uma reflexão de condições mais gerais da nossa humanidade (exemplo sobre o texto do casal). Há uma tendência dispersiva sobre a condução da elucidação da linha de força dramática, que é saber quem é a figura do porão e porque tem o desígnio de trazer o recado peremptório do drama. O universo ficcional está se refletindo sobre si e não apenas se concentrando e preparando o cheque do destino individual. A propensão da instiga de saber das origens das leis de forças que mantém aqueles seres inconscientes e vacilantes sobre seu passado e futuro, provoca nossa necessidade de interpretar as mesmas leis de forças que por analogia atravessa nossa realidade individual e social. Tarefa inconteste de exercer cada dia mais consciente as rédeas de nosso destino.

14/07/09

3 comentários:

Linda Graal disse...

bom vc retornando! ;)

beijobeijo

ilario disse...

ótimo ver esse homem do rim deslocado voltar a publicar por aqui..pelo menos pra mim, que fico mais perto dos teus escritos...grande abraço companheiro (engraçado chamar alguém de companheiro, né?!)...e força na caminhada...

Anônimo disse...

Olá Rogério, boa tarde!!

Nessa terça tem apresentação da peça "Por que a criança cozinha na polenta", na qual estou no elenco em SP, no Espaço dos Parlapatões às 21h.

O espetáculo que narra à trajetória de uma família circense exilada da Romênia na era "stalinista" ganhou 24 prêmios e diversos festivais no segundo semestre de 2009.

Sua presença me deixaria muito feliz! Caso não tenha compromisso, peço apenas que envie um e-mail p/ eu deixar 1 ingresso (vip) reservado na bilheteria do teatro.

Email: marcostasp@hotmail.com

Abraços
Marcos Felipe

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