quarta-feira, outubro 26, 2022

Notas sobre os contos de Monteiro Lobato: Negrinha e Bugio Moqueado.

Sobre os contos de Monteiro Lobato: Negrinha e Bugio Moqueado.

Por Rogerio Guarapiran.

Gravura anônimo de cerca de 1797 que representa as limitações da liberdade e democracia francesas em solo haitiano - Coll. Archives départementales de la Gironde.(https://www.historia.uff.br/impressoesrebeldes/revista/alem-do-medo/)

Contexto. Monteiro Lobato (1882-1948) na teoria literária é caracterizado como um pré-modernista, regionalista e o sumo de sua obra se divide em 2 gêneros, contos adultos e fábulas infantis. Foi um editor empreendedor e crítico nacionalista. É considerado um ideólogo no sentido de propagar ideias eugenistas, racistas e liberais.

O livro “Negrinha”, foi publicado em 1920 e representa uma fase madura como contista, após os títulos de Urupês e Cidades Mortas. Trazem contos com mesclas de gêneros com situações e personagens mais desenvolvidos. Os contos “Negrinha” e “Bugio Moqueado” tratam de situações de violência e revelam índices de comportamento bárbaro no trato com pessoas escravizadas e/ ou subjugadas pelo poder senhorial e patriarcal da época colonial e pós abolição. Por isso foram escolhidos para discutir a crueldade e os racismos estruturais que permanecessem em nossa sociabilidade contemporânea.   

O conto “Bugio Moqueado” retrata um “causo” narrado de modo indireto por um torcedor que ouviu outro torcedor contando a seu interlocutor, dentro de uma cancha esportiva. O “causo” é ouvido de esguelha pelo Narrador que transcreve de maneira indireta o “Prosador”, dando o efeito retórico de oralidade no texto e transpondo a ação ao tempo presente do Prosador. A voz captada entre aspas no texto abre numa jura inicial: “...é pura verdade. Fui testemunha”. O “causo” se passa pelas bandas de Mato Grosso e o Prosador seria um negociante de gado que foi tratar com o “Coronel Teotônio”, homem descrito com “ar de carrasco” e suspeito de ter praticado muitas mortes. Dessa negociação surge o convite para um jantar na casa do Coronel. Casa que é descrita como repugnante tal como o aspecto do proprietário. A sala de jantar é sombria e na mesa há um “prato misterioso”. O Coronel convoca uma senhora branca, pálida, de ar cadavérico e comportamento de “morta-viva” para se sentar com eles e ordena que ela coma o prato misterioso que contém uma “carne preta”, que, no ponto de vista do Prosador, preludia uma tragédia familiar. O Coronel diz servir carne de macaco bugio para a mulher. O Prosador, passados alguns anos desse estranho encontro, descobre por um homem negro, Zé Esteves, que esse Coronel matou seu irmão, Leandro, por um boato que ele teve relações com a patroa e o Coronel castigou-o, matou-o de “... morte matada. Foi morto a rabo de tatu.” e seu corpo foi servido aos pedaços para a espoca comer. O arremate do conto traz um tom de desvendamento, elucidamento de um caso trágico. Mas a tragédia que causa compaixão e medo é sobre quem ou qual pessoa da história? Para o homem negro assassinado só temos algumas breves linhas no final, descrito indiretamente na “voz” de seu irmão, Esteves, as palavras são objetivas e pouco subjetivas, ressaltam a malvadeza do Coronel e a culpa de uma terceira pessoa na intriga, no caso uma mulher negra, Liduína acusada de “feitiçaria”. Agora, a mulher branca tratada como santa parece ser a imagem do sofrimento digna de compaixão. O terror fica por conta das ações do Coronel e a compaixão ficam para sua esposa “mártir”, enquanto a existência subjetiva do homem negro é negada e metonimicamente desumanizada, ao ser tratado como “bugio” e “tatu”.

O conto trata de um caso mais ou menos indeterminado no tempo, pois não é possível dizer se teria ocorrido no tempo da validade da escravidão legal no Brasil ou pós-abolição, mas se configura como uma formação de lenda moral e cruel, que serve como “causo” exemplar da ética do terror com a qual operava os dominadores escravagistas em relação com seus “empregados”, tratados como propriedades servis e passiveis de serem eliminados por requintes bárbaros. O conto traz ainda, características simbólicas ao tratar de aspectos das personagens como o Coronel, como figura de terror, alcunhada como “urutu” que significa serpente e jararaca, símbolo do mal e diabólico, além da atmosfera da casa do Coronel, descrita como “cerimônia fúnebre” e “cárcere da Inquisição”. Essas características realizam uma dialética de não pactuação e não coadunação com os arbítrios e desmandos dos poderosos de outrora e vigora uma visão humanista, limitada e parcial em que a mulher branca é a mais exaltada como aquela que tem que tragar a carne humana comparada a um símio.

 

O conto “Negrinha” é uma narrativa que tem por personagem principal uma criança órfã de 7 anos, negra e nascida sobre a lei do ventre livre, pois “nascera na senzala, de mãe escrava...”. Em sua descrição inicial é salientada a tonalidade da cor da pele, “mulatinha escura” e sua compleição física, “magra, atrofiada” contrastando com a apresentação de sua antagonista, a “excelente senhora, a patroa” e “gorda, rica”, Dona Inácia, aquela que “não gostava de criança”. É um conto carnal, desde as primeiras linhas, percebe-se o uso explícito do sentido da carnalidade no uso descritivo das “banhas” e “nervos em carne” da senhora e as remissões metafóricas como, “choro da carne de sua carne” e a “carne alheia” que marcam forte a impressão da leitura de entrada. O corpo da menina é alvo de violência gratuita e registra as marcas da tortura em sua “pobre carne”, merecendo por parte do Narrador uma metáfora oriunda da física mecânica em que a imagem do seu corpo é como um imã que atrai o aço e serve para a descarga de fluídos. Metáfora determinista que se junta com a passagem: “Estava escrito que não teria um gostinho só na vida”. Enquanto, D. Inácia é descrita como sádica e impiedosa nos castigos, pois ela “vinha da escravidão”, de um tempo em que esse costume cruel era prática corrente. A concepção de violência doméstica descrita tem o aspecto de catarse para a patroa, pois para quem pratica “alivia a gente” e serve “para desobstruir o fígado e matar a saudade do bom tempo”. Ao fim da desproporcional apresentação das personagens, vemos que Negrinha não tem agência de vontade, ao contrário da patroa que desfila suas vontades e satisfações no corpo da menina.

Na segunda parte, surgem os episódios de provação de Negrinha perante o massacre. Na “história do ovo quente”, o Narrador toma uma postura narrativa que surpreende e se dirige ao leitor diretamente: “Não sabem? Ora!” como se fosse de conhecimento amplo e reproduz os acontecimentos sádicos como mais um exemplo da dominação da senhora sobre a criança. Na segunda e principal história, Negrinha se espanta com o brincar de duas meninas brancas, seus brinquedos e o objeto da boneca marca sua percepção de maneira decisiva. É como um despertar para a humanidade e agência de vontade da menina, um tornar-se gente, com a possibilidade de brincar e criar mundos imaginários que eram proibidos para ela. Tomada de êxtase com a boneca nos braços, o Narrador descreve-a “como se penetrara no céu”, no auge da metáfora cristã, mesma ideologia de seu algoz que a surpreende com a boneca e surpreendentemente concede uma oportunidade da menina Negrinha brincar. O Narrador exalta esse ato, destacando a “gratidão” expressa na “surrada carinha” da menina e ressalta o momento de “divina eclosão” da percepção da menina em tornar-se “ente humano”, de não ser mais coisa e passar a ter alma. Nesse ponto arremata uma concepção biologizante da mulher e do feminino na sociedade.

Na última parte do conto, o desfecho-morte precoce da menina, que tão logo tomou consciência de sua humanização, foi “essa consciência que a matou”. Aquela reminiscência da boneca e o despertar de imaginação que o brincar lhe proporcionou fez dela catatônica e a paralisou para as necessidades da vida. Morreu de inanição, cessou o desejo, a vontade, como se um instante de vida fulgurante não coubesse em tal corpo negado e propicio ao castigo não aguentasse experimentar tamanha liberdade, levando-a ao paroxismo da vida-morte. O Narrador onisciente e investido de um moralismo agônico chega ao ponto mais estranho de seu poder de penetrar na visão do outro, ao discorrer sobre a epifania que a menina teve, com a visão de bonecas-anjo, louras a cercar a menina negra que extinguiu sua vida em suposto deleite para quem morre e para quem assiste a morte, pois ela “morreu com maior beleza”. E o fechamento do conto é desesperadoramente cruel, frio e desolador ao subsistir as impressões dos dominadores de corpos sobre a menina que se descobriu gente num instante curto, e aquela ideia positiva se volta contra ela, negativa. É a reversão do imã. A ironia saudosista dos tempos da escravidão prevalece pela terna brecha de humanismo que se abriu no conto. Mas foi um furo no tecido da branquitude que se abriu e logo foi costurado.