domingo, maio 21, 2006

Estréia nos Contos




Meu conto de estréia: "ele virou crente - ponto"
Espero que seja o primeiro de muitos, mesmo que não agrade muita gente.
Sejam francos, não poupem o estreante
Comentem se possivel
Grato!

Ele virou crente - ponto

Alta madrugada, eu, numa vigília exasperada, suspendo meus trabalhos que corriam desde o termo do dia passado. Meu texto não estava pronto, mas – ponto – era preciso descansar. E como, depois de rolar na cama, o sono desejado não veio, larguei mão, liguei a tv e zap-zap-zap, opa, pera aí, volta, zap, o canal evangélico. Todos sabem como são esses programas. Eu, um pouco indiferente das coisas da fé, acho isso tudo curiosíssimo e me atrai em especial os casos em si de que lá se tratam, e não o modo de como tratam que é lá coisa que não comento. Pois então, quem vejo eu na telinha quando zapeava, com a sua carantonha engraçada tomando conta de toda tela, olhos lacrimejantes, voz um pouco embargada... era meu vizinho! Demorei em conseguir me fixar na narrativa em que ele se dava. Fiquei hipnotizado e por segundos tudo o que ele falava soava para mim uma pasta sonora e sua imagem uma reminiscência indagadora. Havia tempo que não o via e olhe que inda éramos vizinhos. Lembrei então que minha mãe um dia: - O Lenílson, ele “virou” crente depois de aprontar mais uma daquelas... e desatou contar detalhadamente o caso... Eu achei engraçado o ele “virou” crente, do resto pouco me lembro, mexerico certamente. Na cabeça da gente as pessoas viram uma coisa, viram outra, num passe de mágica, raramente ouvimos dizer que fulano se transformou, o que acho seria mais correto observar, denota assim que a pessoa passou por processo e não – zap – passam de uma coisa a outra. Lenílson Vaz e eu éramos amigos de remota memória, apenas quando crianças nos dávamos... a adolescência nos separou, ou melhor a conjuntura econômica de sua família em época que coincidiu com sua adolescência o afastou não só de mim como de toda vizinhança. Andavam por essa época afortunados, o pai da família Vaz a custa de muito pelegar “virou” capataz da Usina de Asfalto e tratou logo de por o filho em escola particular, ocupá-lo de cursos e mais cursos que o preparassem para perpetuar a fortuna em que ali a família entrava. O símbolo maior dessa “virada” de sorte da gente Vaz que foi a casa forte que construíram, espécie forte-apache em meio a edifícios humildes de todo o bairro. Pôs em redoma a gente Vaz. Grades resistentes, muros altos, cercas eletrificadas, câmeras vigilantes, alarmes estapafúrdios, vigia noturno e o escambal. Em verdade todo um aparelho que de nada adiantava, chamava sim mais atenção dos bandidos que adoravam driblar esses sistemas e tornavam a casa o sonho dourado da bandidagem. Tanto assim foram os episódios de latrocínio que mais e mais se fortificava a casa. Essa obsessão, que era bem um pânico, uma síndrome a tudo externo e intruso só cessou com a morte do pai e também isso bastou para os ladrões ali perdessem o interesse. Puxa vida, mas do que diabos falava o homem na tv? Agora sim suas palavras eu as entendia, falava exatamente da fase em que sua família vivia atormentada, com medo da criminalidade. Mas, foi aí então que de abrupto o pastor interrompeu a narrativa de um novo episódio que se estendia demais e perguntou usando gestos firmes - ... você disse irmão, que recebeu o chamado de Deus? Quando isto se deu, pode nos contar esta história? Lenílson deu um suspiro, engoliu um quanto de saliva. A câmera registrou bem a comoção que preludiava novo depoimento, pode se ver com detalhes as duas mãos atritando-se e enfiando-se entre as coxas, um pender de cabeça, o peito arfando. – Eu estava desiludido, tinha perdido o emprego, em casa era um inferno, brigava direto com minha mãe, ela começou a beber depois que meu pai morreu... eu não achava aquilo certo... tudo muito ruim... doenças, eu ficava muito doente, cheguei a ficar sem andar, não conseguia, todo travado... – Tem dúvida que era o demônio que te atormentava? Atalhou o pastor – Não, nenhuma, mas só depois que entrei pra igreja que vim saber disso. – E o que sua mãe fazia por você? – Trouxe benzedeira, me levou para umbanda, mesa branca e só piorava, eu sentia fortes dores de cabeça... – Você devia se perguntar onde estaria Deus, se te havia abandonado, não é? – Sim, sim, não sabia mais o que fazer, já pensava em me matar... Aproveitou o pastor nesse ponto, girou 45 graus com sua cadeira, teve de frente com a câmera que o pegava de perfil, senti-me encarado. – Vejam vocês ao ponto que o desespero nos leva, e esse desespero é o quê? A falta de Deus, um Deus vivo e único que preencha a pessoa. No caso do nosso irmão aqui foi um chamado último que ele atendeu, agora você, que está em sua casa, não precisa esperar as coisas cheguem nesse ponto, você está sendo chamado sempre, é preciso ter ouvidos atentos, não ficar achando tudo bem, normal... novo giro de 45 graus e agora estando de frente para câmera que antes do primeiro giro estava às suas costas, assevera-se: - Deus te chama! Domingo temos fogueira santa, apareça por lá, vai ser recebido nas mãos de Deus. Cheguei a acenar com a cabeça, confirmando de que ia atender ao chamado. O pastor voltou-se com um giro novamente para ter com Lenílson. – Irmão, temos um vídeo de sua história aqui, vamos vê-lo? Depois atenderemos as ligações de quem queira nos dar um depoimento emocionante da fé e você continua com a gente contando o que mudou em sua vida... foi-se o vídeo para o ar; uma tosca representação dramática do que acabara de narrar confusamente o rapaz Lenílson. Isso rolando pus-me a reconstruir sua trajetória feito quebra-cabeças com as peças que desordenadamente possuía: os comentários da gente circundante da família Vaz. Ia ficando pasmado ao passo de tudo quanto e tanto me lembrava sobre o caso. Não era coisa fácil de se entender, o que acabara de ver e ouvir era pra mim tão estranho. O depoimento religioso dele ocultava uma série de fatos, misturava acontecimentos, enfim, soava-me incoerente: afinal de contas, quando esteve ele entrevado sem poder andar? Nunca o soube, pelo contrário, sempre fora robusto de saúde, rapagão forte. Diga-se o que quiser, mas certo é que preferi o punhado de quanto consegui reunir sobre o caso e que tinham o sabor popular e não aceitei a versão crente do próprio protagonista. Do que eu próprio sei é que Lenílson desde os 14 já se ocupava em cargo de escritório arranjado por seu pai na Usina de Asfalto. A cobrança paterna se fazia tanto em casa como no trabalho sufocando o jovem que talvez ainda não tivesse preparado para sustentar o precoce homem que o pai queria brotasse em pele de menino. Conseqüentemente dava-se mostra de garoto triste nos poucos lances em que era visto ao fresco, amuado sempre, enfurnado num terninho azul-marinho para ir à escola e encoleirado numa rubra gravata para trabalhar. Quando sucedeu a morte do pai houve um episódio: não esteve presente ao enterro e por uma semana sumiu de casa, andou por onde ninguém soube senão com suposições e testemunhos falsos, porque isso é mistério mesmo para sua mãe que em época chorou como se fosse dois os mortos da casa, sofreu deveras. Ao sétimo dia tornou todo maltrapilho, fedendo a toda espécie das misérias do abandono, sua mãe tratou de pô-lo a prumo e o fê-lo retomar sua vida. Estava por assumir a função do pai, foi preparado para isso. Eu, por muito meditar nesse episódio, acho que meteu-se Lenílson em estripulias carnais que um moço de 19 anos naturalmente é inclinado. O coitado só devia ser casto, pois quando se lhe sobrava tempo para gozar as mulheres? Era muito atribuído lá com a empresa, os afincos ao estudo, seu pai-patrão a lhe zelar... enfim... as paixões num jovem represam-se, e toda represa que não dê vazão arrebenta! Andou-se mesmo dizendo - ninguém sabe a fonte - que viram Lenílson em bordeis sujos da cidade. Tudo bem, passado o susto, dias se passaram de prosperação: o rapaz se engajara bem nas suas novas atribuições de homem da casa, estava próximo a se formar administrador de empresa e arranjara até uma namorada que rapidamente tornara-se sua noiva. Falou-se pela vizinhança que a noiva podia bem ser uma prostituta por quem o rapaz se apaixonou na suposta aventura de 7 dias, esse juízo só porque nunca se soube quem era a tal noiva, ela não deixou nunca ser vista. Mas isso não se pode provar e mesmo fosse ela o que fosse, não importa... Tudo-tudo até que... conta-se que o rapaz, três meses depois da morte do pai, num súbito, parou com toda sua vida, empacou simplesmente, largando emprego, faculdade, desfazendo o noivado e caiu no maior desgostoso desinteresse às coisas desse mundo – más línguas falam em pura vadiagem, vá lá saber...: – “agora surtô”, diziam todos. Eis que recebe a visita de Deus em seu quarto, ao acordar, num dia normal... e o próprio a ele fala, em voz grave imagino: - FILHO, NÃO FAÇA NADA ATÉ QUE EU DIGA O QUE DEVE FAZER. Fez-se o que Deus queria, óbvio, entendeu que devia suspender todas suas obrigações terrenas, esperar novo desígnio e fazer por merecer o que lhe aguardava e devia ser bom o que lhe aguardava. Não saiu mais do quarto desde então. Sua mãe ao ver o filho agora ermitão em seu próprio quarto, nos primeiros dias, achou-o apenas acometido por doença, alguma virose que lhe baixara o ânimo e não quis acreditar no que o filho lhe dizia veementemente sobre o visita de Deus a ele. Cuidou em trazer médico em casa e que o atestou em perfeita saúde, quis levá-lo ao psiquiatra quando viu a “doença” a lhe demorar no corpo, teimava ainda lhe estar o filho doente. Drogas?! Não queria crer, mas suspeitou até não poder e devassou o quarto em procura de entorpecentes. O filho muito sereno negava toda acusação e não fez conta que se lhe pusessem o quarto de pés pro ar... A essa altura devem espantar-se pela riqueza de detalhes que dou conhecimento sobre o que se passava na casa dos Vaz, eu que até a pouco me mostrava desinformado e desinteressado por esse amigo perdido na estrada da vida. Mas, não é pra menos eu agora repuxar tudo que me contaram, queria remontar com riqueza. Parecia eu ter uma esteira rolante instalada no cérebro e fazendo ponte com meus olhos. Ela transportava um amontoado, estocado no cérebro de tudo o que ouvi dizerem sobre o caso, e que iam dar como imagens despejadas no globo ocular. Eu, por sorte contava ainda com os mexericos de mamãe... em toda crise da família vizinha, a mãe de Lenílson vinha chorar o desmazelo de ter um filho “paradão”, assim mesmo ela o dizia, com a minha mãe, única com quem se dava pelas redondezas, minha mãe sua costureira. O rapaz passava os dias e as noites no quarto, não assistia tv nem ouvia música, deitado mor parte do tempo, outras ao pé da janela, olhar perdido e também no banheiro, sentado no trono meditando. A comida sempre vinha até ele em rações espécie presidiária, não se sentava à mesa mais. A noiva, desde começou a paralisia do seu, só apareceu uma vez mais para desatar o compromisso e saiu muito feliz, porque isso aconteceu em tempo dela poder escapar sem muitos prejuízos, imagine se estivessem casados, pior seria, o moleirão seria carga dela, assim era da mãe e não estava disposta aliviar-lhe a sogra dividindo-o. A senhora Vaz ressequia de tanto chorar, colocava remédios receitados à escondida no meio da comida, biotônicos, vitaminas, dopantes como calmantes dos pesados... ela sim drogava o filho e esse saia-se cada vez mais chibil. Mas havia horas de pura revolta da matrona e subia ao quarto do filho, encolerizada, falando que poria termo a sua vadiagem: ou por-se-ia de pé pronto a voltar ao trabalho ou metê-lo-ia internado! Nem tchum para mãe, o não fazer nada que Deus lhe havia promulgado valia também em não reagir contra ninguém e nem contra quais fossem as injurias e ameaças que recebesse. E vamos nós com nós, a mãe só da boca pra fora tinha coragem, o resto nela era a maior dó do mundo pelo filho; parecia entender nos seus instantes de clareza que tudo era muito natural de se estar acontecendo: com a morte do pai ele viu-se livre e livre até de mais das pressões que fizera dele uma máquina que agora pifou. Mas como sustentar essa compreensão em meio tudo desabar, a casa entrar em colapso, ora, se arrimo de família deixa de render nem por isso as contas param de vir e apesar de terem boas economias elas iam-se escoando numa velocidade absurda que se deixava mostrar a todos, o portão elétrico enguiçado, o mato a subir pelas paredes, uma rachadura na soleira... a paralisia do filho era também a dos serviços que mantinham a casa em bom estado. O programa ainda rolava, o pastor conversava com Lenílson, mas já pouco me interessava por aquele da tv, o Lenílson que eu remontava era mais interessante, muito mais vivo... desliguei a tv! Deitei na tentativa, mas quem disse que conseguia pregar os olhos. Lembrei dos últimos episódios que minha mãe me foi contando, aos picados, logo colhia os acontecimentos em casa da vizinha. A mãe de Lenílson pensou em se matar, foi minha mãe que ajudou afastá-la dessa idéia, mas isso não antes dela tentar todos os recursos que ela se achou capaz de recorrer, o último deles foi... o falecido Vaz teve uma queda em época da vida por espiritualidades e reencarnações, interesse que passou como vento ligeiro, mas ficaram em casa poucos livros na instante sobre o assunto, os mesmos que a senhora Vaz foi buscar como uma instância para ver se lhe valiam no caso de pôr o filho em ativa. Que confusão a cabecinha dela se transformou. Sempre foi católica de uns poucos sermões guardados na caixola, santos espalhados pela casa e de ter a folhinha de Nossa Senhora marcando data, nunca deitara no evangelho mais que um olhar furtivo e agora embutia mal e porcamente ditames de Blavatsky, Kardec... com um tanto de livrecos de auto-ajuda que se vai muito difundido entre nós e dos piores que se podem arranjar. Com as leituras conseguia serenar a cabeça um pouco, mas era só perceber uma infiltração nas paredes, ter que dispensar uma empregada por não poder mais mantê-la, não ter mais jardineiro que lhe cuidasse do jardim que tudo lhe estava mal de novo e se punha em desatino de pensar matar-se; dizia não suportar seu karma. E dos 19 aos 21 não fez outra coisa que não fosse estar em seu quarto, Lenílson, e sempre bem asseado, disso não se descuidava, fazia barba, tomava banho, todo dia... até que sentiu os ossos doerem de tanto sedentarismo. Evadiu-se sem mais nem menos; a mãe que naquele dia entrou em seu quarto com a ração diária e viu o quarto bem arrumado como há tempo não via, já uma alegria sentiu. Nem sinal do habitante enclaustrado, outra alegria maior tomou-a. Pensou um monte: até na possibilidade mesmo de que Deus tivesse enfim cumprido o que combinou com o filho e lhe tivesse dado o seu desígnio. Pôs-se em vigília até que o filho retornasse, queria abraçá-lo loucamente, dar graças à Deus, ver a vida se restabelecer... e ficou ela na paralisia, não fazia nada, nem mesmo cuidava de se alimentar, não fosse minha mãe que lhe preparasse algo definharia ali no sofá posto defronte da porta de entrada esperando o filho romper a sala. Um, dois, três dias... e nada voltar o filho, no sétimo dia pressentiu ela que seria o da volta assim como fora da última vez que Lenílson aprontou sumiço parecido. Ajeitou a casa, perfumou-a, floriu-a, preparou boa cozinha, iguarias prediletas do filho, deixou no banheiro toalha felpuda, roupas limpas, esperava-o roto novamente. Mas qual que veio! Superou os sete dias, foi somente no décimo segundo dia que tornou ao lar quando a mãe já duvidava do regresso e tentava recuperar sua normalidade entregando-se às tarefas domésticas. Pode se estranhar, mas nos dias nono, décimo e décimo primeiro do sumiço ela se encontrava feliz de verdade e bem aliviada, porque se contentou pensar que estivesse como/onde/com quem estivesse o filho pelo menos tinha resolvido encarar o mundo novamente. Foi uma surpresa estranha ver seu filho retornar, ainda mais como se lhe apresentara. Lenílson estava em figura e espírito muito contrário a primeira experiência: aprumado num bom terno e tinha uma energia emanando confiança e auto-estima. Teve tudo de um reencontro emocionante e quis a mãe saber tudo sobre o que se passara com ele nesses dias, também sua maior dúvida: Deus havia reaparecido a ele? Em meio uma enxurrada de questionamentos e muito fugidio o rapaz, só dizia uma única coisa: - “Virei” crente, mãe! Assim o mistério permanecia, mais um na galeria do jovem. E creio que a senhora Vaz deve se perguntar quantos mais virão para seu sofrimento. Eu que há um bom tempo tinha levantado da cama e enquanto pensava nisto tudo, também já tinha feito uma boquinha matinal e assistia o amanhecer do dia, as primeiras fagulhas de sol rompendo o horizonte... uma deslumbrante visão, ah, mas juro trocaria por um bocado de sono. Havia me entregado a remontar todo esse caso fantástico para no fim ver se eu não engrossava o coro: dizer que Lenílson “virou” crente simplesmente, mas em vão foi meu esforço se até o próprio atestou ter “virado” e pronto – ponto. Quem não engrossa o coro perde o sono.
Rogério Guarapiran – 05/2006

domingo, maio 14, 2006




Essa semana sem posts, porque estou decidindo minha vida e estou como esse corcunda míseraval aí. Na próxima semana retomamos. Obrigado!

domingo, maio 07, 2006

"O Assassinato do Bibliotecário de Joelma"- Cont.

V

Da cortina entreaberta pôde-se ver achegando-se o jardineiro Miroel. A casa que agora bisbilhoto é a daquele que já sabemos morto da história, Ademir, o bibliotecário municipal. Morava bem, num bairro abastado, embora não tivesse automóvel, mantinha alguns outros luxos para sentir-se bem e auto-estimado. Uma de suas paixões era seu jardim frontal em qual cultivava espécimes botânicas muito curiosas e exóticas, dentre as de mor estima tinha em conta uma caninha do brejo plantada por sua falecida mãezinha e uma... um outro diabo de planta que não me lembro o nome (Ademir mesmo o dirá, sosseguem). O bibliotecário que acordara a pouco vagava pela casa de chinelas e vestia um pijaminha argênteo um tanto alambicado, avistou também a chegada de seu jardineiro, e sem se mostrar acionou o portão de casa com o controle remoto e pode entrar a fazer seus serviços, Miroel. Nossa vítima da primeira cena era um quarentão vaidosão, solteirão e solitárião, cuidara da mãe até esta apodrecer decrépita em seu aposento hoje cerrado e lacrado que exala, se meteres o nariz na fresta e aspirar violentamente, odor de crisântemo mais que murcho, ressequido e velho, poerento; não deixou que pessoa alguma a visse em doença degenerativa do sistema nervoso, nem aos médicos permitia. Causou escândalo silencioso na sociedade circundante, caso que o tomaram por monstro os que conheciam o caso. Não se importava e até sentia certo prazer e orgulho aos olhares receosos que o miravam ao sair e entrar de sua casa. Diz uma lenda, que não pegou nem se difundiu, porque só duas pessoas a comentam em âmbito familiar e em contextos restritos que o esqueleto da velha adormece ainda no quarto funéreo e sai de quando em quando do seu aposento, principalmente aos dias que o filho prepara sua bebida predileta, o chá da caninha do brejo. Lendas são lendas (não precisava dizer isso, mas é isso). Depois de passar um cafezinho deveras aromático, aprumou-se para o trabalho em boa camisa de tom pastel e calça de brim como as que não se usam mais. Ademir era utópico... (também isso não precisava dizer, mas está dito) Pousou os beiços feito borboleta na xícara de café e sorveu o líquido como sugasse néctar duma flor graciosa. Ao sair de casa pegou seu molho de chave, crachá e carteira. Dava-se já para rua quando lembrou de levar uma fruta, como costumaz fazia, para degluti-la no meio da manhã, quando lhe dava uma fome angustiante. Correu a passos tão leves à cozinha que parecia flutuar, os bracinhos finos sacolejavam, era como o beija-flor no seu vôo lépido, pousou à frente de sua fruteira e vacilou em escolher qual fruta levaria, acariciou uma banana, uma pêra, uma maçã, voltou à banana, foi para o kiwi, achou-o peludo demais, rejeitou-o; a pêra parecia-lhe passada, descartou-a; teria de escolher entre as que restou. Seria sua primeira escolha a banana como todos os dias, pois que precisava ingerir carboidratos que ela lhe fornecia para não padecer de câimbras, seu único mal de saúde, de resto tinha para dar e vender. Mas não esqueçamos, o dia era estranhíssimo, nosso bibliotecário quis dar-se ao revés da rotina, doidamente mudou da sempre banana que a metia no bolso pra uma bela maçã escolher. Na saída pegou-se ainda da casaca, não estava tão frio, mas nunca descuidou do peito e um livro que se encontrava no sofá. Fora estava Miroel de quatro arrancando alguns matinhos impertinentes que ousavam crescer naquele belo jardim e assobiava uma melodia inidentificável de quatro notas. Como pegasse de sua monareta 73 elengantérrima e estivesse pronto para sair, chamou: - Miroel, tudo certinho aí? – Opa, tudo em riba, seu Ademir. – Ah Miroel, faz tempo que eu tô pra te dar uma coisa... o jardineiro olha-o conturbado, logo alivia-se ao vê-lo estender um livro. – Tudo sobre plantas, jardinagem e um pouquinho mais. Ele levanta e recebe o agrado com muita cortesia: - Ô, obrigado, vai ser de grande valia... [que merda é essa? O viadão tá pensando que nasci ontem... refletiu Miroel enquanto examinava superficialmente o presente] – Que bom que você gostou, e deu um sorrisinho superior. - Ah, antes de eu ir, só mais uma recomendação: da outra vez você cortou minha xefléra (“xefléra” isso que eu tentara lembrar ainda há pouco, aí está, como disse), sei que não fez por mal, mas não a corte mais, eu adoro xefléra e morro por ela. Prontamente o jardineiro acenou-lhe entendido e deu como soubesse de qual planta ele tratava. – Sabe de que planta estou falando, logicamente... qualquer coisa consulte o livro, adeus! Partiu garboso na sua monareta. O jardineiro folheia o livro [essa porra pro diabo!] e não vendo utilidade joga-o ali mesmo. Arma-se de seu tesourão e mãos à obra!... opa, detém-se um instante... [qual será a tal de “xefléra” que não quer que corte?] intuitivamente tenta descobrir passando o olho pelas plantas, olha o livro jogado aos seus pés... [aí pode estar a resposta.... foda-se!] Mete o tesourão em tudo, raivoso.

segunda-feira, maio 01, 2006

Assassinato do Bibliotecário de Joelma - Cont.


Ola, mais uma postagem. Essa foi uma semana triste, porém engraçada.


IV

Jair acordou de sobressalto como se num instante último de seu sonho galopante lembrassem-lhe o dever de todas as manhãs: comprar pão para avó. Correu a verificar se sua avó dormia ainda no quarto ao lado e também a ver se seu irmão deixara o dinheiro em cima da mesinha da cozinha antes de sair ao trabalho. O dinheiro não estava lá... ele deu rodopios, soltou exclamações guturais, coçou o umbigo, bateu de leve a canela na cadeira... enfim, entrou em pane, nada que seja anormal para um anormal, comportamento de deficiente mental que era. Em distúrbio rodopiante deu de fuça com a porta da frente, queria atravessá-la, manejou tremilicadamente a maçaneta enferrujada e saiu às tontas para rua. Em frente da humilde casa, Gérson, seu irmão (aquele mesmo da roda fora do eixo), consertava sua bicicleta aos pontapés tentando por no centro sua roda empenada. Viu Jair desembestar no meio-fio. Assustou-se um pouco com a sempre imprevisão das atitudes do irmão, mas fez-se firme para num assobio agudo trazer-lhe de volta. – Tava indo pra onde, Jair? Tu deixa de loucura! O irmão intimou. – O dinheiro...do pão, replicou esbaforido. – Tá vendo que é cedo? Caiu da cama?... Gérson irritadiço desfere um croque na cabeça ovalina de Jair: - Ai, ai, gemeu o danado, a vó... comprá pão pra vó! Insistia na idéia e o irmão ralhava-lhe. Grudou-lhe enfim pelo colarinho esgarçado, arrastou-o e entraram os dois. No pequeno aposento da sala, tratou de fazer sentar Jair à força, este se contorcia e balbuciava monossílabos que se queriam palavras em seu débil cérebro que estava sendo oprimido: “pão” e “vó”. Outro croque, este agora mais contundente, forte, descontrolado, bufante, fustigou o rapaz como pedra escarpada fervente de granito que o atingisse bem sua testa numa velocidade aproximada de 27,77m/s vinda ela numa trajetória diagonal de cima pra baixo e causasse logo um rubro galo e gotejassem-lhe lágrimas duma dor aguda. As mãos vão logo à fronte e a cabeça logo ao vão dos joelhos. Gérson com a mão ainda atarracada ataranta-se em ver o que causou. – Veja o que você me fez fazer, sua culpa, sua culpa... e abana a cabeça como quisesse desanuviar sua tela mental que só exibia cenas terríveis de como trucidar um irmão mongolóide. Quis abraçá-lo, beijar sua testa, insistia com ele que não o queria mal, parou consternado frente ao moleque chorão: – Olha Jair, eu... eu... e antes que desse prosseguimento em sua oração arrependida, da fresta lateral da janela, uma leve brisa toca-lhe o ouvido esquerdo assoprando-lhe: - Caia de joelhos, filho, tu és mau e assim não te salvas; um arrepio correu seu corpo como fluido de estanho derretido a queimar suas intempestivas entranhas. Correu a fechar a janela, observou de relance que o tempo tornara-se feio lá fora, cinzento como não contava ser aquele dia. Teve tempo de dizer para si, ao lance que voltava para o irmão, que virá dia em que a voz soprante o deixará em paz. – Olha pra mim Jair! Vagarosamente soergueu a cabeça. – Você vai comigo à padaria, não tenho dinheiro, vou pedir fiado, aí você volta com o pão e prepara o café pra vó, sem ataques, a vó tá doente e por isso mesmo você tem que se comportar direitinho. Ele concordou com a cabeça e emendou: - a vó vai morrê amanhã... o irmão preparou instintivamente outro golpe, mas conteve e o indagou quem lho botou isto na cuca. – Eu sei, a vó vai morrê amanhã... – Ora, você quer que ela morra, seu condenado? – Compra flor pra vó! – Ai Jair, você só me dá dor de cabeça. Vem comigo! E puxou-o agora pela manga direita esburacada; saíram.