Uma análise inconclusiva da peça “Transamazônica” de Rudinei Borges.
Por Rogerio Guarapiran
"A rodovia, planejada para ligar o Piauí ao Acre, nunca foi concluída. Chegou apenas até a cidade de Lábrea, no Amazonas. A maior parte da estrada não foi asfaltada, tornando-se intransitável na época das chuvas. Os colonos, que vieram principalmente do Rio Grande do Sul, terminaram isolados e sem assistência para produzir. As obras da Transamazônica atravessaram territórios de 29 povos indígenas." (Memorial da democracia. Transamazônica)
O título é homônimo da estrada BR-230, que corta transversalmente as regiões nordeste e norte, e teve sua concepção e início da construção durante o período da ditadura civil-militar (1964-1985) no Brasil sob o lema: “integrar para não entregar”. Ela corta o país como uma cicatriz em quase todos os biomas brasileiros, principalmente a floresta amazônica, provocando vastas destruições ambientais e conflitos sociais entre populações nativas e forasteiras. Acelerou o processo de colapso de vários sistemas de vida, visões de mundo e o desequilíbrio do ecossistema estabelecido por milhares de anos entre humanos e não humanos. Pela violência do sistema capitalista e por consequência da nova ordem mundial do pós 2ª guerra mundial, a construção da estrada gerou massacres e cobiças, e também, contraditoriamente, gerou possibilidades e combinações novas entre as populações que foram se misturando empurradas por esse sistema perverso.
Transamazônica me remete a duas realidades antagônicas. A primeira, diz respeito à projeção da modernidade brasileira imposta pela elite dominante e a um desejo sempre inacabado e segregador dessa classe. A segunda, é sobre a vontade sanguinária de posse que vem disseminado em todas as classes pela desigualdade social e sua vontade de domínio do território “inexplorado” a despeito do entendimento mínimo sobre a resistência inconteste da natureza e das populações nativas pré-estabelecidas neste mesmo território.
Rudinei Borges, poeta, dramaturgo, produtor cultural e acadêmico, é natural de Itaituba, sudoeste do estado do Pará, cortada pela Transamazônica, banhada pelo rio Tapajós e habitada por parte do povo indígena Munduruku. Em sua educação formal foi seminarista, é filósofo graduado, mestre em Educação pela USP e atualmente faz doutorado em Educação. Destaco de sua biografia, dentre os interesses que ele próprio manifesta como importantes para sua obra, sua experiência interiorana e amazônica da infância; a migração e importância da presença feminina de seus familiares ascendentes; sua religiosidade católica e a experiência estética de seus rituais; os conhecimentos e sensibilização pelos conflitos agrários; a cosmovisão ribeirinha e indígena sobre o mundo sobrenatural e mítico; e a visão erudita e crítica adquirida com a cultura letrada de sua formação acadêmica e artística nos grandes centros. Sobre Transamazônica, ele considera como obra inacabada e fruto de um impedimento de conhecer os trechos da estrada, por causa da violência deliberada.
Interpreto, a partir dessas variadas experiências do artista, que há, na obra Transamazônica, um ideal de reelaboração de suas memórias e vivências pessoais que se expressa, sobretudo, no interior da forma cênico-literária, no seu modo de organização de encadeamento de cenas não-lineares; no seu arranjo espaço-tempo fragmentário e espiralado; e na forma dos diálogos e monólogos que circunavegam na “repetição e diferença” de suas sentenças com força ilocutória, ou seja, as falas possuem uma força unitária que solicita o público-leitor para adentrar o enigma contido nas repetições e descrições com todo seu subjetivo e não somente enunciar ações das personagens e conflitos individuais. Com isso há uma tragicidade que imbrica todas as forças e conteúdos para o mesmo ponto sensível, quer queira, o tema do narrador-autor e seu drama da perda familiar ou do tema político da Transamazônica que como um monstro mítico vem arrasando a humanidade.
O Prólogo é o parto-ida do mesmo ponto biográfico, Itaituba ao final da tarde. Penso numa dupla função metalinguística nesse início, apresentar o Narrador ao público e o Narrador apresentar ao público a peça que se desenrolará. Tendo em vista o subtítulo, “Destroços” e a descrição da rubrica, há uma pré-direção do geral para o particular, somente após o contexto da localidade e da fotografia é que aparece o narrador que avista “destroços de si e do tempo”. Será que o Narrador não sai de dentro de uma fotografia? A primeira impressão é que o narrador visita o cenário de sua memória, externo a ele, uma teatralidade da memória em termos psicanalíticos. A primeira palavra é o verbo “guardar”, o narrador guarda cruzes pela estrada, assim como Castro Alves no poema “A cruz da estrada”, o caminheiro sente o pulsar do chão, busca as raízes do povo que aduba a terra. O Narrador é demiurgo do mundo porvir e a fotografia é a “memória pura”(Bergson), fora dele, a qual ele quer por em movimento, fazer saltar as pessoas para fora, recuperar rostos e formas daqueles que o geraram, pois a família é destroços e recompor é preciso. Busca a mãe no meio de migrantes, não consegue ver seu rosto, ele mesmo não sabe do próprio rosto, mas acha a mão da mãe, descobre sua história através do corpo, uma lembrança espiritual que pode ser manipulada pela imaginação criadora a partir de uma lembrança em movimento “mais ou menos conscientemente localizada."(Matéria e Memória). Fala de corpos e partes espalhados pela estrada, de corpos que tombam como árvores de uma floresta remexida. A natureza toda é parente. A mão da mãe trabalha, modifica o lugar, produz vida em cima de cemitérios de árvores. A fala é curta, criadora e instauradora de realidades duras e diretas que saltam pelo espaço-floresta imaginário. Ao fim, descobre um homem sozinho, através do barulho de uma motosserra - ou sua fala produziu o barulho? O que vem antes dele? A fala ou os estímulos? Algumas falas são repetidas para não esquecer ou porque se esquece é que se repete. “Deus é um forasteiro” implica em pensar que um Deus só é Deus porque migra, só pode gerar seu mundo estando fora do seu lugar, precisa partir para fundar novos mundos, assim como a mãe partiu com os seus, o pai partiu sem os seus e como o Narrador que partiu e está olhando para os seus à distância.
No capítulo 1, “Revólver”, é sobre a lei do lugar, a violência latente e sobre os valores. Há um deslocamento espaço-temporal, a noite com seu claro-escuro ilumina as 2 figuras que travarão um diálogo à beira da estrada, à beira da vida, à beira do tempo e do sonho-realidade. As falas curtas reforçam a tensão de uma arma de fogo em cena. Primeiramente, destaco a centralidade do objeto na cena e também no discurso. Objeto de desejo e de sociabilidade. Nas falas e gestos há um jogo de repetição e diferença, pois cada vez que se repete uma sequência pode-se ver uma pequena diferença na intenção, um acréscimo, uma intuição que vai desembocar na transformação da cena pela tomada de percepção por parte do Menino que fala: "Você nasceu para morrer”, e desfecha na revelação do Pistoleiro: “Sou seu pai.” Em segundo lugar, chamo atenção para a tensão sexual/afetiva contida na troca de mãos do objeto e dos relatos de manipulação destes assim como narrativas de execução que demonstram uma atração pelo “corpo do inimigo”, desejo de aniquilamento: “Uns nascem pra morrer” que se converte no seu reverso. Em terceiro lugar, mas não em menor importância, é o contexto de sonho-memória, como se houvesse algo na ação objetiva que falha, não se mostra por inteiro, é oculto ao observador. Será que o Narrador está à espreita observando ou ele é Menino ou o Pistoleiro?
O Prólogo contém uma memória longa e o primeiro capítulo uma memória curta, tipos de memórias postas em relação:
“A memória curta compreende o esquecimento como processo; ela não se confunde com o instante, mas com o rizoma coletivo, temporal e nervoso. A memória longa (família, raça, sociedade ou civilização) decalca e traduz, mas o que ela traduz continua a agir nela, à distância, a contratempo, ‘intempestivamente’, não instantaneamente. (Delleuze e Guatarri. Mil Platôs vol.1)
O capítulo 2, “Amparo”, a cena está situada em nova localidade e sob uma nova claridade, a do meio-dia, onde o Colono faz a defesa de uma segunda figura, Benzedeira, ameaçada por um terceiro agente repressor. É uma cena de conflito social típico, conflito de rua como Brecht relata como exemplo ao ator épico, um trânsito entre a vivência e a narração. Nesse caso a cena é toda vicência como demonstra o jeito exaltado de falar do colono. Ela é toda feita de crença, de fé, de indignação inquebrantável. Os argumentos são críveis, sentimentais e supersticiosos. Há três posições em cena e uma fala emocionada, mas direta em seus objetivos. Ela está configurada como uma cena de passagem, oriunda de uma cena continuada e recortada no tempo. Como se o conflito ela fosse flagrada por um olho externo. O colono quer amparar a solidariedade que sustenta a harmonia do seu universo ao defender uma figura santificada na forma de uma benzedeira-parteira popular. A ameaça de uma ordem repressora impõe a morte do sistema tradicional por uma burocracia sem sentido. Ele está pronto para o sacrifício em prol do coletivo, o que demonstra um alto grau de idealização arquetípica de um herói que quer sustentar um mundo em destruição, como se o Colono tentasse amparar um tronco de uma árvore cortada.
O capítulo 3, nova distância e hora do dia. “Mucura” é tenta um tipo de gambá, como uma bebida à base de cachaça e também uma espécie de prisão. Estamos agora no interior de um cenário, na presença de uma Colona que segura uma espingarda, figura matuta que elabora uma mitologia da necessidade, uma filosofia da fome, e que está em interlocução com uma figura (imaginária?) que supõe superioridade: “O que devo o senhor averigue”. Novamente o símbolo da arma de fogo, mas dessa vez como um símbolo da sobrevivência humana: “tenho que caçar, senão morro de fome”, diferente do sobre-poder com que é tratado no capítulo 1. O discurso da Colona é sinuoso, palavra-puxa-palavra, imagem-puxa-imagem e vem caçando seu interlocutor como se fosse a própria Mucura. Ela é uma migrante, dividida entre dois biomas: sertão e floresta, símbolo da adaptação e por vezes seu discurso arma armadilhas de autoconsciência: “não cegue a vista: uma mulher sozinha que alimenta cinco filhos.” Sua visão dos encantados da mata como a Matinta Perera demonstra integração e total clareza de sua participação dentro do ecossistema. Sua descrição ativa da caça e do preparo da Mucura é ativa e performática: fala sobre aquilo que faz e faz aquilo que fala, atingindo um dos ápices da ação textual.
O capítulo 4, “Iraxeru” é referência a uma entidade da cosmologia Munduruku. Aparece como personagem da narrativa mítica sobre a criação dos cães. (Coisas de Índio. Daniel Munduruku). Novo deslocamento de espaço e novo horário da ação: à meia-noite, estamos em presença da personagem mítica que está frontalmente nos encarando. A indicação de um solo sagrado cortado por uma estrada é uma metáfora-símbolo que engloba o contexto de toda peça e ecoa em conteúdo na fala central dessa entidade. O tom da fala é ritual, sintética, telegráfica, com frases formadas de uma só palavra. Isso demonstra uma estética que mimetiza a fala xamânica, evocativa de mundos e repleta de sabedoria transcendental e mágica. Abre-se uma narração fantástica e produtora de inconsciente, “produzir inconsciente e, com ele, novos enunciados, outros desejos: o rizoma é esta produção de inconsciente mesmo. (Delleuze e Guatarri. Mil Platôs, vol.1) Uma fala que se espalha como rizoma, uma fala criadora e destruidora, narrativa violentada de um mundo que “Era”, depois foi invadido por um “trator que comia terra” e se transforma num lugar de “nunca mais”. No interior dessa narrativa, a repetição de frases causam efeito estilístico de quebra com a verossimilhança de uma fala xamânica naturalista. Há uma conjugalidade com a voz literária de Guimarães Rosa que extrai beleza e magnitude em meio a crueldade e violência mais geral.
“(...) faça rizoma e não raiz, nunca plante! Não semeie, pique! Não seja nem uno nem múltiplo, seja multiplicidades! Faça a linha e nunca o ponto! A velocidade transforma o ponto em linha! Seja rápido, mesmo parado! Linha de chance, jogo de cintura, linha de fuga. Nunca suscite um General em você! Nunca idéias justas, justo uma idéia (Godard). Tenha idéias curtas. Faça mapas, nunca fotos nem desenhos. (Delleuze e Guatarri. Mil Platôs vol.1)
Entre os capítulos 3 e 4 há uma relação entre as personagens femininas que enfrentam um paradoxo de narrar suas histórias que possuem forças ilocutórias como se solicitassem uma alteridade urgente. São entidades da natureza, espíritos da mata, encantadas e míticas, mas que possuem uma realidade da sociedade brasileira impregnada nelas. Revelam indignação e não assujeitamento ao masculino. “A vida vale. Mesmo na dor. A vida vale.” (Rudinei Borges)
O capítulo 5, “Pistoleiros” é o subtítulo mais direto que remete exatamente àquilo que vai se desenrolar, o encontro de dois pistoleiros à beira da estrada, numa madrugada. Há uma ligação subterrânea e um desenvolvimento em relação com o capítulo 2 e coloca a arma de fogo no centralidade. O diálogo é marcado pela forma da repetição de trechos inteiros com ritornelos acrescidos de diferença. A repetição dá ênfase na conduta moral desses pistoleiros, suas crenças e dogmas, e também funciona como estranhamento, e provoca o público-leitor a extrair algo de novo através da forma e não somente do conteúdo. Novas relações em cima do já conhecido, essa forma não é representada, não é dramatizada e nem mimetizada. Deleuze e Guattari no “Diferença e Repetição” nos dá uma chave para essa forma. Ao dizerem que a repetição difere da representação que é o ato de mediar, alguém representa algo. Há um movimento abstrato na representação, pensar através de algo mediado. A repetição é anti-representação, pois tenta atingir a coisa por si mesma como se alguém tentasse materializar a coisa repetindo seu nome várias vezes. A repetição desdramatiza. A fórmula da repetição está nas orações, ladainhas, na memória, na psique, nos sonhos, nos dejavus, etc. “Repetição é própria do consciente enquanto linguagem e a Diferença, o jogo de oposição que assume valores, máscaras. A diferença só ganha contraste num aparelho/máquina de repetição.”(Delleuze e Guattari). A diferença é cruel, cria rupturas na continuidade, cria de individualidades, distingue semelhanças, ele é representativa como a condição da palavra no universo da linguagem. As palavras são finitas e sempre repetidas, o que cria uma diferença é o contexto. Repetição e diferença é o próprio processo de significação que forma a potência real da linguagem na fala e na escrita. Há uma “repetição que aprisiona e uma repetição que salva (...) É da repetição evitar a morte.” (Delleuze e Guattari). Dentre os temas da crueldade e da morte entre os pistoleiros o destino de Magal, do boi, da freira e a referência da música “Índia” são paradigmáticos, pois se confundem como símbolos de uma cultura e da condição humana inescapável. Sonhar que morre a cada tiro cria uma subjetividade que liga algoz e vítimas como peças de um maquinismo sufocante.
O epílogo, com o subtítulo “Fotografia” traz de volta a voz do Narrador ao mesmo ponto inicial, agora com uma projeção da fotografia de um funeral. Ele vai discorrer sobre a fotografia buscando uma interpretação sobre o passado. Sobrevoa como um condor, retomando a referência ao poeta Castro Alves, sobre a topografia dos destroços familiares e com uma linguagem rebuscada, cogita com muitos “talvez” qual seria a vida por trás daquele momento congelado. A narração vai fechando o foco até a descoberta das figuras materna e paterna, e a gestação de si próprio. Fechamento circular e enigmático de uma trajetória acidentada, essa cena procura descobrir o singular da fotografia, dentro do comum fato de deixar fotografar-se, uma afronta ao real, os rostos nublados e cortados, vestígios de roupas e posturas corporais, tudo é signo e sentido. “A fotografia é referência ao real vivido, a dor congelada.” (Roland Barthes. A câmara clara)
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