quinta-feira, agosto 21, 2025

Uma análise inconclusiva da peça “Transamazônica” de Rudinei Borges.

Uma análise inconclusiva da peça “Transamazônica” de Rudinei Borges.

Por Rogerio Guarapiran




"A rodovia, planejada para ligar o Piauí ao Acre, nunca foi concluída. Chegou apenas até a cidade de Lábrea, no Amazonas. A maior parte da estrada não foi asfaltada, tornando-se intransitável na época das chuvas. Os colonos, que vieram principalmente do Rio Grande do Sul, terminaram isolados e sem assistência para produzir. As obras da Transamazônica atravessaram territórios de 29 povos indígenas." (Memorial da democracia. Transamazônica)

Link para ler a peça.

O título é homônimo da estrada BR-230, que corta transversalmente as regiões nordeste e norte, e teve sua concepção e início da construção durante o período da ditadura civil-militar (1964-1985) no Brasil sob o lema: “integrar para não entregar”. Ela corta o país como uma cicatriz em quase todos os biomas brasileiros, principalmente a floresta amazônica, provocando vastas destruições ambientais e conflitos sociais entre populações nativas e forasteiras. Acelerou o processo de colapso de vários sistemas de vida, visões de mundo e o desequilíbrio do ecossistema estabelecido por milhares de anos entre humanos e não humanos. Pela violência do sistema capitalista e por consequência da nova ordem mundial do pós 2ª guerra mundial, a construção da estrada gerou massacres e cobiças, e também, contraditoriamente, gerou possibilidades e combinações novas entre as populações que foram se misturando empurradas por esse sistema perverso. 

Transamazônica me remete a duas realidades antagônicas. A primeira, diz respeito à projeção da modernidade brasileira imposta pela elite dominante e a um desejo sempre inacabado e segregador dessa classe. A segunda, é sobre a vontade sanguinária de posse que vem disseminado em todas as classes pela desigualdade social e sua vontade de domínio do território “inexplorado” a despeito do entendimento mínimo sobre a resistência inconteste da natureza e das populações nativas pré-estabelecidas neste mesmo território.    

Rudinei Borges, poeta, dramaturgo, produtor cultural e acadêmico, é natural de Itaituba, sudoeste do estado do Pará, cortada pela Transamazônica, banhada pelo rio Tapajós e habitada por parte do povo indígena Munduruku. Em sua educação formal foi seminarista, é filósofo graduado, mestre em Educação pela USP e atualmente faz doutorado em Educação. Destaco de sua biografia, dentre os interesses que ele próprio manifesta como importantes para sua obra, sua experiência interiorana e amazônica da infância; a migração e importância da presença feminina de seus familiares ascendentes; sua religiosidade católica e a experiência estética de seus rituais; os conhecimentos e sensibilização pelos conflitos agrários; a cosmovisão ribeirinha e indígena sobre o mundo sobrenatural e mítico; e a visão erudita e crítica adquirida com a cultura letrada de sua formação acadêmica e artística nos grandes centros. Sobre Transamazônica, ele considera como obra inacabada e fruto de um impedimento de conhecer os trechos da estrada, por causa da violência deliberada.   

Interpreto, a partir dessas variadas experiências do artista, que há, na obra Transamazônica, um ideal de reelaboração de suas memórias e vivências pessoais que se expressa, sobretudo, no interior da forma cênico-literária, no seu modo de organização de encadeamento de cenas não-lineares; no seu arranjo espaço-tempo fragmentário e espiralado; e na forma dos diálogos e monólogos que circunavegam na “repetição e diferença” de suas sentenças com força ilocutória, ou seja, as falas possuem uma força unitária que solicita o público-leitor para adentrar o enigma contido nas repetições e descrições com todo seu subjetivo e não somente enunciar ações das personagens e conflitos individuais. Com isso há uma tragicidade que imbrica todas as forças e conteúdos para o mesmo ponto sensível, quer queira, o tema do narrador-autor e seu drama da perda familiar ou do tema político da Transamazônica que como um monstro mítico vem arrasando a humanidade.    

O Prólogo é o parto-ida do mesmo ponto biográfico, Itaituba ao final da tarde. Penso numa dupla função metalinguística nesse início, apresentar o Narrador ao público e o Narrador apresentar ao público a peça que se desenrolará. Tendo em vista o subtítulo, “Destroços” e a descrição da rubrica, há uma pré-direção do geral para o particular, somente após o contexto da localidade e da fotografia é que aparece o narrador que avista “destroços de si e do tempo”. Será que o Narrador não sai de dentro de uma fotografia? A primeira impressão é que o narrador visita o cenário de sua memória, externo a ele, uma teatralidade da memória em termos psicanalíticos. A primeira palavra é o verbo “guardar”, o narrador guarda cruzes pela estrada, assim como Castro Alves no poema “A cruz da estrada”, o caminheiro sente o pulsar do chão, busca as raízes do povo que aduba a terra. O Narrador é demiurgo do mundo porvir e a fotografia é a “memória pura”(Bergson), fora dele, a qual ele quer por em movimento, fazer saltar as pessoas para fora, recuperar rostos e formas daqueles que o geraram, pois a família é destroços e recompor é preciso. Busca a mãe no meio de migrantes, não consegue ver seu rosto, ele mesmo não sabe do próprio rosto, mas acha a mão da mãe, descobre sua história através do corpo, uma lembrança espiritual que pode ser manipulada pela imaginação criadora a partir de uma lembrança em movimento “mais ou menos conscientemente localizada."(Matéria e Memória). Fala de corpos e partes espalhados pela estrada, de corpos que tombam como árvores de uma floresta remexida. A natureza toda  é parente. A mão da mãe trabalha, modifica o lugar, produz vida em cima de cemitérios de árvores. A fala é curta, criadora e instauradora de realidades duras e diretas que saltam pelo espaço-floresta imaginário. Ao fim, descobre um homem sozinho, através do barulho de uma motosserra - ou sua fala produziu o barulho? O que vem antes dele? A fala ou os estímulos? Algumas falas são repetidas para não esquecer ou porque se esquece é que se repete. “Deus é um forasteiro” implica em pensar que um Deus só é Deus porque migra, só pode gerar seu mundo estando fora do seu lugar, precisa partir para fundar novos mundos, assim como a mãe partiu com os seus, o pai partiu sem os seus e como o Narrador que partiu e está olhando para os seus à distância.  

No capítulo 1, “Revólver”, é sobre a lei do lugar, a violência latente e sobre os valores. Há um deslocamento espaço-temporal, a noite com seu claro-escuro ilumina as 2 figuras que travarão um diálogo à beira da estrada, à beira da vida, à beira do tempo e do sonho-realidade. As falas curtas reforçam a tensão de uma arma de fogo em cena. Primeiramente, destaco a centralidade do objeto na cena e também no discurso. Objeto de desejo e de sociabilidade. Nas falas e gestos há um jogo de repetição e diferença, pois cada vez que se repete uma sequência pode-se ver uma pequena diferença na intenção, um acréscimo, uma intuição que vai desembocar na transformação da cena pela tomada de percepção por parte do Menino que fala: "Você nasceu para morrer”, e desfecha na revelação do Pistoleiro: “Sou seu pai.” Em segundo lugar, chamo atenção para a tensão sexual/afetiva contida na troca de mãos do objeto e dos relatos de manipulação destes assim como narrativas de execução que demonstram uma atração pelo “corpo do inimigo”, desejo de aniquilamento: “Uns nascem pra morrer” que se converte no seu reverso. Em terceiro lugar, mas não em menor importância, é o contexto de sonho-memória, como se houvesse algo na ação objetiva que falha, não se mostra por inteiro, é oculto ao observador. Será que o Narrador está à espreita observando ou ele é Menino ou o Pistoleiro?      

O Prólogo contém uma memória longa e o primeiro capítulo uma memória curta, tipos de  memórias postas em relação:  


“A memória curta compreende o esquecimento como processo; ela não se confunde com o instante, mas com o rizoma coletivo, temporal e nervoso. A memória longa (família, raça, sociedade ou civilização) decalca e traduz, mas o que ela traduz continua a agir nela, à distância, a contratempo, ‘intempestivamente’, não instantaneamente. (Delleuze e Guatarri. Mil Platôs vol.1)


O capítulo 2, “Amparo”, a cena está situada em nova localidade e sob uma nova claridade, a do meio-dia, onde o Colono faz a defesa de uma segunda figura, Benzedeira, ameaçada por um terceiro agente repressor. É uma cena de conflito social típico, conflito de rua como Brecht relata como exemplo ao ator épico, um trânsito entre a vivência e a narração. Nesse caso a cena é toda vicência como demonstra o jeito exaltado de falar do colono. Ela é toda feita de crença, de fé, de indignação inquebrantável. Os argumentos são críveis, sentimentais e supersticiosos. Há três posições em cena e uma fala emocionada, mas  direta em seus objetivos. Ela está configurada como uma cena de passagem, oriunda de uma cena continuada e recortada no tempo. Como se o conflito ela fosse flagrada por um olho externo. O colono quer amparar a solidariedade que sustenta a harmonia do seu universo ao defender uma figura santificada na forma de uma benzedeira-parteira popular.  A ameaça de uma ordem repressora impõe a morte do sistema tradicional por uma burocracia sem sentido. Ele está pronto para o sacrifício em prol do coletivo, o que demonstra um alto grau de idealização arquetípica de um herói que quer sustentar um mundo em destruição, como se o Colono tentasse amparar um tronco de uma árvore cortada.       

O capítulo 3, nova distância e hora do dia.  “Mucura” é tenta um tipo de gambá, como uma bebida à base de cachaça e também uma espécie de prisão. Estamos agora no interior de um cenário, na presença de uma Colona que segura uma espingarda, figura matuta que elabora uma mitologia da necessidade, uma filosofia da fome, e que está em interlocução com uma figura (imaginária?) que supõe superioridade: “O que devo o senhor averigue”. Novamente o símbolo da arma de fogo, mas dessa vez como um símbolo da sobrevivência humana: “tenho que caçar, senão morro de fome”, diferente do sobre-poder com que é tratado no capítulo 1. O discurso da Colona é sinuoso, palavra-puxa-palavra, imagem-puxa-imagem e vem caçando seu interlocutor como se fosse a própria Mucura. Ela é uma migrante, dividida entre dois biomas: sertão e floresta, símbolo da adaptação e por vezes seu discurso arma armadilhas de autoconsciência: “não cegue a vista: uma mulher sozinha que alimenta cinco filhos.” Sua visão dos encantados da mata como a Matinta Perera demonstra integração e total clareza de sua participação dentro do ecossistema. Sua descrição ativa da caça e do preparo da Mucura é ativa e performática: fala sobre aquilo que faz e faz aquilo que fala, atingindo um dos ápices da ação textual.       


O capítulo 4, “Iraxeru” é referência a uma entidade da cosmologia Munduruku. Aparece como personagem da narrativa mítica sobre a criação dos cães. (Coisas de Índio. Daniel Munduruku). Novo deslocamento de espaço e novo horário da ação: à meia-noite, estamos em presença da personagem mítica que está frontalmente nos encarando. A indicação de um solo sagrado cortado por uma estrada é uma metáfora-símbolo que engloba o contexto de toda peça e ecoa em conteúdo na fala central dessa entidade. O tom da fala é ritual, sintética, telegráfica, com frases formadas de uma só palavra. Isso demonstra uma estética que mimetiza a fala xamânica, evocativa de mundos e repleta de sabedoria transcendental e mágica. Abre-se uma narração fantástica e produtora de inconsciente, “produzir inconsciente e, com ele, novos enunciados, outros desejos: o rizoma é esta produção de inconsciente mesmo. (Delleuze e Guatarri. Mil Platôs, vol.1) Uma fala que se espalha como rizoma, uma fala criadora e destruidora, narrativa violentada de um mundo que “Era”, depois foi invadido por um “trator que comia terra” e se transforma num lugar de “nunca mais”. No interior dessa narrativa, a repetição de frases causam efeito estilístico de quebra com a verossimilhança de uma fala xamânica naturalista. Há uma conjugalidade com a voz literária de Guimarães Rosa que extrai beleza e magnitude em meio a crueldade e violência mais geral.


“(...) faça rizoma e não raiz, nunca plante! Não semeie, pique! Não seja nem uno nem múltiplo, seja multiplicidades! Faça a linha e nunca o ponto! A velocidade transforma o ponto em linha! Seja rápido, mesmo parado! Linha de chance, jogo de cintura, linha de fuga. Nunca suscite um General em você! Nunca idéias justas, justo uma idéia (Godard). Tenha idéias curtas. Faça mapas, nunca fotos nem desenhos. (Delleuze e Guatarri. Mil Platôs vol.1)


Entre os capítulos 3 e 4 há uma relação entre as personagens femininas que enfrentam um paradoxo de narrar suas histórias que possuem forças ilocutórias como se solicitassem uma alteridade urgente. São entidades da natureza, espíritos da mata, encantadas e míticas, mas que possuem uma realidade da sociedade brasileira impregnada nelas. Revelam indignação e não assujeitamento ao masculino. “A vida vale. Mesmo na dor. A vida vale.” (Rudinei Borges)

O capítulo 5, “Pistoleiros” é o subtítulo mais direto que remete exatamente àquilo que vai se desenrolar, o encontro de dois pistoleiros à beira da estrada, numa madrugada. Há uma ligação subterrânea e um desenvolvimento em relação com o capítulo 2 e coloca a arma de fogo no centralidade. O diálogo é marcado pela forma da repetição de trechos inteiros com ritornelos acrescidos de diferença. A repetição dá ênfase na conduta moral desses pistoleiros, suas crenças e dogmas, e também funciona como estranhamento, e provoca o público-leitor a extrair algo de novo através da forma e não somente do conteúdo. Novas relações em cima do já conhecido, essa forma não é representada, não é dramatizada e nem mimetizada. Deleuze e Guattari no “Diferença e Repetição” nos dá uma chave para essa forma. Ao dizerem que a repetição difere da representação que é o ato de mediar, alguém representa algo. Há um movimento abstrato na representação, pensar através de algo mediado. A repetição é anti-representação, pois tenta atingir a coisa por si mesma como se alguém tentasse materializar a coisa repetindo seu nome várias vezes. A repetição desdramatiza. A fórmula da repetição está nas orações, ladainhas, na memória, na psique, nos sonhos, nos dejavus, etc. “Repetição é própria do consciente enquanto linguagem e a Diferença, o jogo de oposição que assume valores, máscaras. A diferença só ganha contraste num aparelho/máquina de repetição.”(Delleuze e Guattari). A diferença é cruel, cria rupturas na continuidade, cria de individualidades, distingue semelhanças, ele é representativa como a condição da palavra no universo da linguagem. As palavras são finitas e sempre repetidas, o que cria uma diferença é o contexto. Repetição e diferença é o próprio processo de significação que forma a potência real da linguagem na fala e na escrita. Há uma “repetição que aprisiona e uma repetição que salva (...) É da repetição evitar a morte.” (Delleuze e Guattari). Dentre os temas da crueldade e da morte entre os pistoleiros o destino de Magal, do boi, da freira e a referência da música “Índia” são paradigmáticos, pois se confundem como símbolos de uma cultura e da condição humana inescapável. Sonhar que morre a cada tiro cria uma subjetividade que liga algoz e vítimas como peças de um maquinismo sufocante. 

O epílogo, com o subtítulo “Fotografia” traz de volta a voz do Narrador ao mesmo ponto inicial, agora com uma projeção da fotografia de um funeral. Ele vai discorrer sobre a fotografia buscando uma interpretação sobre o passado. Sobrevoa como um condor, retomando a referência ao poeta Castro Alves, sobre a topografia dos destroços familiares e com uma linguagem rebuscada, cogita com muitos “talvez” qual seria a vida por trás daquele momento congelado. A narração vai fechando o foco até a descoberta das figuras materna e paterna, e a gestação de si próprio. Fechamento circular e enigmático de uma trajetória acidentada, essa cena procura descobrir o singular da fotografia, dentro do comum fato de deixar fotografar-se, uma afronta ao real, os rostos nublados e cortados, vestígios de roupas e posturas corporais, tudo é signo e sentido. “A fotografia é referência ao real vivido, a dor congelada.” (Roland Barthes. A câmara clara)


quarta-feira, julho 30, 2025

Aula de Dramaturgia Brasileira

 

Roteiro para Aula de Dramaturgia Brasileira – Rogerio Guarapiran




Objetivo – modos de ver dramaturgia

Primeiro bloco, anos 40 a 60 (do teatro moderno Nelson Rodrigues ao  Seminário do Arena);

2º bloco, anos 70 e 80 (teatro coletivo e ritual);

3º bloco, anos 90 e 2000 (teatro colaborativo e multi-estéticas);

Fechamento, apontamentos, reflexão, bibliografia e créditos;

 

Apresentação:

Olá, sou Rogerio Guarapiran, dramaturgo e músico. Comecei a escrever em 1999, no teatro amador de Taubaté. Em 2006, me mudei para São Paulo para trabalhar com grupos de teatro independente e me profissionalizar. 

Fui atraído pelo “teatro de grupo” que, desde o final dos anos 90 e início dos anos 2000 apresentava peças significativas em nível estético, político e com uma forma de produção coletiva que estava ligado ao discurso do Teatro contra a Barbárie. 

Movimento que ajudou a conquistar a Lei de Fomento ao Teatro para a classe teatral, melhor política pública, ao meu ver, mesmo restrita a um único município.

O discurso era contundente: Teatro não é mercadoria! Deu-se importância ao processo de criação, à pesquisa continuada e ao experimento cênico. Com o Fomento em ação, o grupo pode ser premiado, a partir de um projeto de pesquisa com orçamento… o núcleo pode se dedicar durante um tempo a um tema, através de um processo pedagógico, teórico e prático que coloca todos os integrantes para criar. 

Como resultado, o grupo pode apresentar um espetáculo, entrar em cartaz e colocar a peça no repertório… ou manter a característica inacabada de ensaio, processo aberto… ou simplesmente ficar com a reflexão sobre a pesquisa. 

Houve muitas mudanças e retrocessos culturais nos últimos anos. E a desconfiguração da lei é um problema atual, inclusive o conceito de teatro de grupo está em crise…, apesar de ser um dos mais longevos movimentos artísticos que, ao meu ver teve origem nos grupos da década de 60 e 70 do século XX. O teatro de grupo é uma longa elaboração coletiva que sobrevive aos assédios neoliberais da economia e resistência dentro da sociedade ocidental, que preconiza o individualismo, a competição e o aumento da produção de produtos sempre novos ad nauseam

Eu sou formado nesse sonho de teatro de grupo, pulando de coletivo em coletivo para somar minha força de trabalho, me tornei um “trabalhador da cultura”, para riscar o chão da ideologia e da utopia ao lado de companheiros e companheiras que almejam a mudança histórica, dentro do campo progressista. Estou atrás de fazer um teatro de consciência e poesia, de luta e contradição, para questionar o status quo e também ser respeitado dentro dos coletivos, pela dedicação e seriedade do meu trabalho, como profissional de dramaturgia. 

Esse é o meu lugar de fala dentro do teatro. Ele tem limites e, portanto não é a história universal ou a história total do teatro brasileiro, desde Padre Anchieta, que me interessa… Não sou teórico e nem pedagogo teatral, então proponho um olhar histórico a partir de fragmentos que juntei na minha caminhada e histórias que ouvi e li, fazendo ligações idiossincráticas… que me ajudam a compreender o porquê fui atraído por esse tipo de teatro e como a forma de produção que os grupos em que estou inserido e do nosso tempo histórico influencia minha criação. 

Muitas vezes me acho limitado, subjetivamente, por contradições pessoais ou técnicas, mas tento me manter consciente, pois a maioria das dificuldades que enfrentamos são objetivas e interpessoais… por isso devemos nos manter vigilantes e atentos para conseguirmos um entendimento coletivo, principalmente se queremos produzir obras teatrais relevantes, pois a obra teatral é sempre de muita gente que a faz. 

Minha questão é como fazer teatro em coletivo e a dramaturgia que me interessa é aquela que tem a dimensão coletiva como experimento, seja no tema como na forma.                

Dentro dessa perspectiva quero apresentar, nessa aula sobre Dramaturgia Brasileira, um recorte bem específico que contempla minha pesquisa pessoal e um olhar para o “teatro crítico”, aquele que problematiza a sociedade, suas relações de poder e sua própria linguagem. 

Uso teatro crítico, mas podia ser “teatro político” ou “engajado” de forma ampla, pois entendo que qualquer fazer teatro é político, e deve ser mais ou menos “engajado” em qualquer forma de produção que se dê, assim como qualquer relação humana é política e engajada (mesmo a indiferença e o desprezo é engajado e político). 

Mas o que determina meu interesse é como dramaturgos e dramaturgas negociam sua criação em contato frequente com outros artistas da cena, diretores, produtores, atrizes e atores, cenógrafos, figurinistas, iluminadores e logicamente o público. Como se escreve dramaturgia, pensando que há um sistema teatral-artístico-cultural, que sempre está em crise na modernidade, simplesmente pelo fato de querer saber qual sua utilidade, seu poder de transformação social e sua viabilidade econômica.      

Estou usando dois livros para essa exposição. O segundo volume da “História do Teatro Brasileiro”, organizada por João Roberto Faria, e escrita por vários pesquisadores. E o livro “A hora do teatro épico no Brasil” de Iná Camargo Costa. 

Através deles, vou apresentar um quadro que se inicia no Seminário de Dramaturgia do Arena em 1958 até as experiências do teatro colaborativo e as multilinguagens no primeiro decênio dos anos 2000. Eventualmente vou me referir a dramaturgos e montagens, mas o foco não é individualizar a questão seguindo os gênios e os mais afamados pela crítica, mas seguir o movimento coletivo, as mudanças de tendências, movimentos e grupos que imprimiram uma tendência e contribuíram para formar uma onda revolucionária que chegou até nós em diferentes intensidades. 

 

Bloco 1 

Vou começar falando do teatro dos anos 40, sobre o mito do modernismo na dramaturgia, e explorar alguns autores que conseguiram contribuir com grupos e desenvolver linguagens autorais. Vou pontuando produções até os anos 70, centrado no eixo São Paulo e Rio. 

Então,  o contexto agora acontece sobre o efeito da Segunda guerra mundial e seu pós. Estamos sob um neocolonialismo cultural e econômico norte americano que abriu e fechou nossa primeira janela democrática, de 1945 a 1964. No início dos anos 50 são destacados 3 dramaturgos modernizadores da linguagem, Nelson Rodrigues, Jorge Andrade e Ariano Suassuna. Mas veremos lances apenas dos dois primeiros, por motivos de tempo e ligações com fatos que quero ressaltar aqui. E também porque, Suassuna merece uma aula à parte.  

A obra de Nelson Rodrigues, que é considerada a inauguradora do teatro moderno brasileiro, é a peça “Vestido de Noiva”, escrita e encenada em 1943. Ela traz em si um complexo problema de valoração cultural no Brasil. O teatro só se torna moderno quando um europeu está na direção, no caso o polonês Ziembinski. 

Um parênteses. Lembrando que “dramaturgia moderna”, aquela que, para mim desafia a própria linguagem estabelecida e se mostra como “radical” no sentido da palavra, ir até a raiz, é aquela que trabalha com as linguagens consagradas e promove rupturas, inversões ou negações… nesses aspectos a moderização da escrita para o teatro tinha começado a muito tempo no Brasil, consciente ou inconscientemente… mas não havia condições objetivas, como grupos teatrais independentes para realizar esses feitos estéticos no palco.  

O dramaturgo Quorpo Santo, já no século XIX, pode ser considerado precursor de modernos estilos, como o surrealismo, teatro do absurdo e non-sense, através de uma linguagem confundida com patologia  e personagens precários… com os quais eu aliás me identifico muito… mas não encontrou montagens em sua época e por quase 100 anos ficaram a ser “descobertas”... e também com Oswald Andrade, o “modernista de 1922”, com seus textos “irrepresentáveis”, já era um surrealistas antenado, produzindo textos como, “A morta” e “O Homem e o Cavalo”,  mas preconizou um teatro épico (antes de Brecht aportar no Brasil), com “O rei da vela” que precisou de uma geração posterior para ser considerada moderna.  

Voltando ao problema do “Vestido de Noiva” de Nelson, a peça foi montada pelo grupo Os Comediantes, formado em 1938, por artistas amadores que já questionavam a forma de produzir o teatro hegemônico no Rio de Janeiro. Formas como o teatro musical de Revista, o teatro burlesco cômico, ou o teatro melodramático, utilizavam figuras como “o ponto”, aquele cara que soprava o texto dentro de um fosso e não havia a função de “diretor de teatro”, um artista que centralizaria um conceito de cena como unidade estética. Havia “o ensaiador”, e o “repetidor”, figuras que eram, o dono da Cia ou seu ator principal que treinava e distribuía os artistas pelo palco conforme convenções. 

Então, era o grupo Os Comediantes que já trazia uma proposta modernizadora. Assim motivados, trouxeram um diretor de verdade! Souberam de um polonês que estava fugindo para o Brasil, por conta da Guerra, e foi contratado para a direção dos espetáculos. Ao mesmo tempo, a busca por um autor desembocou em Nelson Rodrigues, que trazia um novo olhar, um olhar para o “teatro de arte”... por mais que Nelson Rodrigues afirmasse em vida que seus textos não tinham influência de nenhuma vanguarda… sua linguagem é facilmente comparada com tendências do novo realismo dramático e psicológico norte-americano, de Eugene O’Neill e Arthur Miller e o teatro expressionista europeu… porém há de reconhecer um apelo popular brasileiro pela cômico e de uma “visão carioca”. 

Seria importante considerar o intento do grupo Os Comediantes, dos seus integrantes como Santa Rosa e Brutus Pereira que tiveram a sacada, em 1943, de misturar Ziembinski e Nelson Rodrigues para culminar numa nova forma de produzir. Forma que já se consagrou na Europa… que consistia na unificação dos elementos de cena: cenários, atuação,  luz, som para produzir uma estética relacionada e signos autorreferentes, atuando num texto fragmentado, composto por planos diferentes da memória e uma trama cheia de lacunas psicológicas… esses elementos consagraram o mito da modernização do teatro nacional.

Outra obra de Nelson que vai continuar impactando o teatro contemporâneo, inclusive lá na frente com Antunes Filho, mas ressalto uma conexão entre sua obra “Anjo Negro”, escrita em 1946, pelo seu caráter de discussão racial. Nelson escreveu Anjo Negro para Abdias do Nascimento, criador do Teatro Experimental do Negro em 1946… O TEN se propunha a trabalhar pela valorização social do negro, através da arte, educação e cultura. Mas “Anjo Negro”, foi censurado por dois anos, não pela sua inovação de linguagem, mas pelo fato da personagem, Ismael, o protagonista, ser negro. A peça só foi liberada sob a condição de que a personagem negra fosse interpretada por um ator branco, pintado de graxa, o famoso “black face”. Anjo negro foi encenada em 1948, pela Cia Maria Della Costa. 

Aproveito esse gancho para ressaltar a importância de Abdias do Nascimento e questionar junto com o propósito do Teatro Experimental do Negro, a qualidade e a quantidade de personagens negras nos poucos textos da “História do Teatro Brasileiro”... são peças como “O demônio familiar” e a “Mãe” de José de Alencar; “Os cancros sociais” de Maria Ribeiro, “O escravocrata” de Artur Azevedo e as comédias de Martins Pena… nas quais o negro aparece linguisticamente incapaz, de forma infantil e preconceituosa, nos papéis cômico, grotesco, deformado, o ou na figuração muda. 

Até Anjo Negro nenhuma dramaturgia brasileira refletia a dramática situação existencial da pessoa negra, segundo o próprio Abdias… mas infelizmente, a encenação do diretor Ziembinski preferiu sancionar o racismo que a censura estatal recomendou, em prejuízo da discussão racial no texto, somente para a peça entrar em cartaz no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. 

Abdias em 1951 escreveu o mistério negro “Sortilégio”, que foi proibida pela censura por “imoralidade”. Durante vários anos. Só em 1957, o TEN apresentou Sortilégio no Teatro Municipal do Rio. A peça mostra os choques das relações raciais, quebrando a ideia de democracia racial iniciada nos anos 30, e reafirma a origem africana contra a sociedade branca dominante. Inaugura no teatro uma estética afro-centrada, conceito estético que nos últimos 10 anos vem sendo atualizada pelos coletivos negros atuais. As estéticas dos rituais de terreiro, as mitologias orixás, a corporalidade das danças… remontam a um certo afro-realismo afro ou afro-futurismo diaspórico importante.  

Pulamos agora para a contribuição de Jorge Andrade, que se deu mais fortemente nos anos 60. Sua contribuição se faz pelo pensamento que o dramaturgo sempre escreve uma única peça, ou seja, a ideia da obra do escritor é uma obsessão em torno de temas limitados. Suas peças possuem conexões de temas e um projeto de entender o homem brasileiro, escreve “dramas históricos” e psicológicos tentando demonstrar condicionamentos sociais com consequências para o bem e para o mal. As peças “A Moratória”(1955), “Pedreiras das Almas”(1958) e “Veredas da Salvação” (1964), além de formarem uma trilogia, marcam uma trajetória de ascensão de um dramaturgo dentro de companhias de teatro, o modo de produção dominante no teatro dos anos 50. A primeira peça, “A Moratória” é montada pela Cia Maria Della Costa, com direção de Gianni Ratto, e Fernanda Montenegro no elenco. A peça trata de forma dramática e relações naturalistas, a decadência da elite agrária que dava lugar à elite industrial. Um drama burguês bem escrito nos cânones ocidentais, com apresentação de personagens, desenvolvimento do conflito, clímax e desfecho.  

A montagem chamou atenção do principal concorrente na cidade de São Paulo. O Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC. Jorge Andrade tem uma ascensão como autor e pensador no sistema cultural e empresarial, e escreveu sua segunda peça, “Pedreiras da Alma”, baseada na tragédia Antígona e nas discussões filosóficas da década de 50, sobre a noção de “novo homem”. Um conceito brasileiro da valorização do indivíduo como fonte de transformação da história, baseado no conhecimento das raízes nacionais, uma busca idealizada do ‘‘autêntico homem do povo” que aspira uma vaga ideia revolucionária. 

Essa junção de modelo histórico e conceito filosófico resultou numa escrita cênica, um texto sem rebuscamento literário. E a montagem pelo TBC possibilitou a Jorge Andrade uma continuação e aprofundamento da sua atividade, dimensões importantes para a dramaturgia autoral. 

O autor pode desenvolver reflexões sobre o exercício de escrita, sistematizações, e regras de procedimentos de composição para a dramaturgia, ou seja, pensar uma pedagogia, ainda que normativa para a dramaturgia brasileira. Dentro do TBC havia encontros teóricos e cursos que estimulavam novos artistas. Jorge Andrade e Décio de Almeida Prado regiam esses encontros e um assíduo ouvinte e aprendiz teve a chance, anos depois, igualmente como Jorge de Andrade, de ascender na firma TBC e tornar-se diretor e montar um texto do já consagrado dramaturgo. Antunes filho dirigiu em 1964, o Veredas da Salvação, naufragando por completo o TBC.   

Montagem de Antunes, fez um trabalho, em termos contrários ao da “empresa de teatro”, dilata o tempo de ensaio em meses intensos de trabalho de preparação dos atores, com laboratórios, exercícios corporais e reuniões discussão de textos sociológicos e filosóficos paralelos aos temas da peça para atingir uma recriação naturalista de um ambiente rural tomado pela histeria religiosa.

A peça foi um fracasso, mas o processo se tornou um marco para o teatro de pesquisa. 

 

Bloco 2

Agora vou explorar a trajetória do Teatro de Arena que foi formado em 1953, como uma resposta ao modo de produção das Companhias de teatro de São Paulo, principalmente ao modelo empresarial do TBC. 

Zé Renato, seu fundador, deu o nome de Arena, que está ligado à forma do espaço de encenação já como uma forma de mostrar a ideia de renovar o fazer teatral pela espacialidade… e uma nova forma de se relacionar com o público… uma preocupação política, mais do que econômica. 

Em 1955, juntam-se a ele uma turma oriunda do Teatro Paulista de Estudantes, artistas da juventude comunista do PCB, como Vianinha e Guarnieri que estavam nessa leva. E nesse encontro o mesmo anseio de mudar a relação frontal, o distanciamento, a frieza e a forma de representação em relação ao público. 

O CPC, Centro de Cultura Popular, que não está no foco desta exposição, deriva desse entroncamento entre estudantes de teatro e a encruzilhada de se profissionalizar no modelo de Companhia de teatro ou continuar na militância. (Aqui vale outra aula!)

As primeiras peças do Arena são de autores estrangeiros, competindo com o TBC, mas a organização interna do Arena se opunha aos modelos empresariais, era horizontalizada nas de tarefas de zeladoria do teatro e nas discussões políticas internas. Isso resultava em formas teatrais… como quebra da ilusão da quarta parede, com a presença de todo elenco no palco enquanto a peça intimista se desenrola, falas de intervenção e comentários. 

Essas atitudes levou os integrantes até a eminente preocupação de se levar à cena a realidade brasileira na dramaturgia e realizar um trabalho de pesquisa continuada. Surge o Seminário de Dramaturgia, em 1958, para estimular essa dramaturgia nacional.

Esta iniciativa foi desenvolvida pela influência de Augusto Boal, que tinha voltado dos Estados Unidos, com sua formação dramática no Actors Studio. Sua entrada no Arena impulsionou novas pesquisas através dos estudos das técnicas de playwright, que são métodos de construção de narrativas, desenvolvidas para a indústria cultural. 

O Seminário de Dramaturgia foi um espaço para o elenco do teatro de Arena desenvolver textos originais sobre a realidade brasileira, a partir de leituras e discussões sobre a criação de cada autor, com o propósito dos autores absorverem a crítica e desenvolverem versões e mais versões de seus textos. Este sistema de criação e crítica é polêmico, mas ao mesmo tempo central para essa demonstração de que a dramaturgia é construída por várias pessoas. Uma intromissão e interação no nível nascente de um texto, no momento em que ele é somente texto… é diferente do texto integral do dramaturgo levado à cena e sofrendo a crítica teatral sobre o produto final.     

A peça “Eles não usam Black-tie” de Gianfrancesco Guarnieri foi escrita antes do Seminário e serviu como modelo nas discussões e orientações que ocorreram no pequeno período de funcionamento do Seminário. A montagem do Arena, em 1958, deu novo fôlego ao Arena, devido ao sucesso de público, que se reconheceu na realidade brasileira que subia ao palco, tanto como linguagem, quanto no conteúdo. A representação da classe trabalhadora e as questões sociais urbanas apareciam de maneira inédita entre nós. 

Aqui cabe a reflexão de Iná Camargo Costa que aponta uma contradição entre a forma dramática da peça de Guarnieri, que acompanha o conflito no interior de uma família que mora na favelados. Pai e filho são operários da mesma fábrica, quando explode uma greve e os impasses que ela provoca estremece as relações familiares e comunitárias. Os diálogos e cenas que evoluem linearmente no tempo, segundo Iná Camargo não conseguem representar o tema principal da greve, um conteúdo social que exigiria uma abordagem épica, ou seja uma forma de representação não naturalista, porém ainda no campo realista para dar conta das complexas visões e relações que estão envolvidas na construção de uma greve, como o conceito de lutas de classe e conflito social expandido. Sua afirmação é contundente: “greve não é assunto de ordem dramática”! 

Isso abre um ponto fundamental para toda produção teatral que quer entender a sociedade e tem pretensão de intervir nessa mesma realidade. A discussão entre forma e conteúdo aparece datada nas análises estéticas, mas tem consequências as análises éticas de como como e porque reproduzir conflitos sociais no palco e como certas formas históricas contém ideologias impregnadas desde o tempo histórico em que foram desenvolvidas. 

O drama, é uma forma identificada com as revoluções burguesas e individualistas do fim do século XVIII, na Europa, na esteira da revolução industrial que escravizava meio mundo afora… uma classe social de comerciantes e negociadores que ascendeu economicamente e queria se ver no palco com a emancipação de seus problemas privados e valores interpessoais como afirmação da vontade individual e conflito subjetivo. Várias descobertas e inovações começara a brotar na cena, tais como diálogos interrompidos, pensamentos incompletos, falta de palavras diante de emoções profundas e outros mecanismos que tentavam imitar a vida de determinada classe social. 

O teatro épico a que se refere Iná, sendo o mais apropriado para temas sociais é igualmente uma reformulação e agrupamento de várias técnicas de narrar o contexto maior em torno de um conflito social e não individual. Bertolt Brecht é quem sistematiza e conceitua esses apanhados dando formas aos conceitos,  de efeito de distanciamento, saltos e retrocessos na narrativa, comentários irônicos sobre os contextos das cenas e utilização da música como expediente narrativo... São algumas das ferramentas épicas que vão aparecer com maior consciência na dramaturgia brasileira, conforme a chegada, recepção e estudo das obras do dramaturgo alemão no Brasil, coisa que se deu ao longo dos anos 60, adiante.

Continuando com a experiência do Seminário de dramaturgia, a peça “Chapetuba Futebol Clube”, de Oduvaldo Vianna Fillho, o Vianinha, foi o primeiro resultado de autoria que passou pelos crivos de seus pares e foi encenada em 1959. A partir daí, o Arena consolida uma “nacionalização da dramaturgia”, mas seu autor apontou uma preocupação excessiva em radiografar e fazer documentos da realidade brasileira na ótica de sofrimentos individuais que mantinha uma contradição de apresentar para um público pequeno-burguês, o produto mercantilizado da pobreza estética da cultura popular. Vianinha se encontra num beco sem saída dentro de sua proposta revolucionária de teatro.                       

Na esteira da análise de Iná Camargo, destaco a montagem da peça “Revolução na América do Sul” de Augusto Boal, em 1960. Ela encerra o curto ciclo do Seminário de Dramaturgia e surge como uma forma limite, sobre as próprias receitas de boa composição que eram buscadas no Seminário. Podemos dizer que Boal como um professor era um aluno indisciplinado, produziu uma escrita anti-modelo naturalista e fora das medidas de unidade de tempo, espaço e carater. Trocou a fórmula dramática que estava nas últimas obras do Arena por uma série de quadros farsescos e uma dramaturgia épica, misturada com teatro de Revista. O enredo é bem direto, uma personagem: José da Silva, um estereótipo do trabalhador pobre, espoliado e explorado por todos os lados, não adquire consciência e foge dos modelos positivos que estavam nas outras peças. 

A peça traz uma elaboração do épico brechtiano com pitadas de sátira do baixo cômico resultando em confusão e desnorteamento entre as cenas e seu tratamento como forma é experimental e político, prenunciando a fragmentação da esquerda, dificuldades de articulação e o perigo da contrarrevolução conservadora que ia desembocar no golpe de 1964.  

Bloco 2

Nesse segundo bloco, vou examinar mais duas experiências cênicas que podem ser consideradas dramaturgia coletivas, pois são escritas envolvidas num processo maior que buscar soluções de como montar um texto pronto de gabinete. Mas agora temos dramaturgias que começam a se conformar dentro dos processos de montagem. O ciclo das peças históricas, “Arena conta…” Zumbi, Tiradentes e Castro Alves, e as peças do Teatro Popular União Olho Vivo, na passagem dos anos 60 e 70. 

E vou me referir rapidamente sobre o “Rei da Vela” do Teatro Oficina como experiência que muda o paradigma de composição com procedimentos carnavalescos e rituais na forma política. E depois daremos um salto mortal para as experiências do teatro colaborativo.   

A série “Arena Conta…” foi desenvolvida a partir de 1965, com Arena conta Zumbi, texto de Guarnieri e música de Edu Lobo. Está no processo inicial de resistência à ditadura, onde há pouco havia estreado o show Opinião, e a estética do musical como enfrentamento e disparador de mensagens de protesto foi um importante mecanismo de linguagem para o teatro. A mensagem através de Zumbi era a da organização da luta armada para tentar barrar os desmandos da ditadura. A estrutura da peça era declaradamente épica, assim como o cenário utilizado, um tapete vermelho, que coloca os atores num lugar de auto-crítica deslocada, como se fossem estudantes da elite branca intelectual discutindo a situação política nas casas abastadas de seus pais e utilizando a história da resistência negra para falar da ditadura. Na linguagem escrita, as narrações são explícitas sobre o desenvolvimento do enredo, não se escondia quais seriam os movimentos das cenas, e os diálogos apenas redundavam a questão política.

O ciclo Arena conta… desenvolveu uma série de mecanismos épicos para o teatro brasileiro, como as narrações, os rodízios de papéis entre os atores e atrizes, utilização da música como parábola e narrativa, e o sistema coringa. Esses mecanismos tiveram uma elaboração teórica e foram expressos por Boal posteriormente.     

A experiência de Rei da Vela, montado pelo teatro Oficina e direção de Zé Celso, em 1967 vem selar a desestruturação do caminho realista/naturalista do drama para colocar-nos no caminho de uma dramaturgia de invenção, radicalmente enigmático, com textos que não expressam mais teses, nem panfletos, nem utiliza o épico como forma de conscientização política…, mas um texto que se coloca numa dialética negativa, que se desdiz e se contraria. Assim é o Rei da Vela, que expressa as relações familiares da burguesia nacional, mas em tom de deboche e desbunde. Assim foram as descobertas das criações realizadas pela encenação que realizou colagens entre elementos diferentes, carnaval, ópera, tropicalismo e as manifestações corporais libertárias elevou a cena para um rito de êxtase dos sentidos.  A redescoberta de Oswald como dramaturgo relevante demorou para encontrar um teatro feito em grupo, onde a radicalidade da cena pode resultar numa espécie de atualização do manifesto antropofágico colocado em prática. 

Agora, a experiência do Teatro Popular União e Olho Vivo, surgido em 1966, que dissemina o trabalho coletivo na construção da dramaturgia - a criação coletiva que será tendência nos anos 70 e 80 - mas o TUOV guarda uma especificidade de ter uma norma ética de trabalho: todas as suas peças devem ser sobre temas brasileiros! E mais, temas que contemplem a participação popular. Pois o compromisso com as plateias populares se faz na prática e não mais no discurso. O grupo inicia um trabalho de ir até os bairros periféricos e levar teatro como um meio de iniciar discussões públicas entre a comunidade e refletir sua própria condição. Ao mesmo que apresenta o teatro pela primeira vez a um imenso público que estava excluído do aparato cultural da cidade. É um tipo de disputa de consciência política que não superestima e nem subestima a capacidade do público popular.  

Com César Vieira à frente dos trabalhos de escrita, o grupo desenvolveu ao longo dos seus primeiros 30 anos, procedimentos dramatúrgicos que são pouco divulgados ou trabalhados fora do grupo, talvez pela especificidade ou puro desconhecimento. O grupo se organiza por assembleias e decide por consenso, através de discussões. Por esse processo  escolhe o tema a ser realizado a encenação, estabelecem-se a fase das pesquisas, improvisações de cenas e a confecção de fichas dramáticas, um formulário em que cada integrante anota ideias de cenas, imagens, músicas sobre o tema. Essas fichas dramáticas são recolhidas pela comissão de dramaturgia e elencadas para se transformar em um roteiro preliminar, sempre discutido em grupo a cada passo. É um processo exaustivo e de intenso debate. 

A características das peças, tinham que ser maleáveis para se apresentar em locais não apropriados para o teatro de palco, então o teatro de rua e as linguagens populares como o circo, o carnaval, as danças dramáticas populares: bumba, meu boi…  sempre eram utilizadas para contar a história de conflitos sociais. 

Para fechar esse bloco, resumo alguns procedimentos para um trabalho coletivo que vão estar como paradigmas para os grupos de teatro:

1. investigação;

2. elaboração do texto com respectiva análise crítica;

3. montagem que desenvolve e complexifica o texto;

4. síntese do espetáculo feita em relação com o público.

 

Bloco 3

A dramaturgia colaborativa surge das experiências da criação coletiva dos grupos da década de 70 e vem se desenvolvendo no interior de cada coletivo, processos em que todos os integrantes participavam da criação do espetáculo, com fronteiras permeáveis entre a divisão de trabalho, hierarquia horizontal e resultados estimulantes que diferiam do teatro comercial e auto alimentaram os coletivos, a continuar na busca de novos processos.

O teatro de grupo dos anos 90 apresenta um discurso crítico que aponta para a histórica falta de políticas públicas de fomento permanente para o teatro. Em São Paulo, organizam-se os coletivos e fortalecem a Cooperativa de Teatro para discutir mecanismos de leis de incentivo à cultura e editais, que são hoje as principais  alternativas para os grupos independentes. Mas, o perigo é sempre os grupos ficarem reféns ou o gargalo apertar pelo aumento de demanda crescente. O dilema fundamental são as comissões de seleção estabelecerem parâmetros de criação cada vez mais restritos, de contrapartidas e restrição de tempo de criação, impondo uma lógica mercadológica, que condiciona a elaboração de projetos e seus resultados. 

O Teatro da Vertigem, em São Paulo, dirigido por Antônio Araújo, estabeleceu uma referência na busca de novas relações colaborativas entre seus integrantes, com o texto e a cena, do teatro com os espaços de representação e propondo novos olhares do público. A trilogia de trabalhos colaborativos, foi iniciada em 1992, com o espetáculo, O Paraíso Perdido, realizado na Igreja Santa Ifigênia, teve a participação do dramaturgo Sérgio de Carvalho. 

No ano de 1995, estreou O Livro de Jó, num Hospital abandonado, com a participação do dramaturgo Luis Alberto de Abreu.

E no ano 2000, estreou Apocalipse, num antigo Presídio, com dramaturgia de Fernando Bonassi. 

As experiências citadas foram acompanhadas de uma cena de grupos importantes não só na cidade de São Paulo, mas em todo país, mas estes três trabalhos ecoaram mundialmente, projetando nossa dramaturgia e o espetáculo teatral como um todo com vivacidade. Não há uma linguagem artística principal que se definiu anteriormente na confecção do espetáculo, não é o texto, nem a atuação, nem a encenação, nem a cenografia ou outro criador preponderante, mas a totalidade do fenômeno teatral inscreve sua própria história e a maneira de se relacionar com o público.

A dramaturgia colaborativa surge em conjunto com o pré-trabalho do grupo, que consiste, desde a conceitualização do projeto cultural, definição de tema, escrita do projeto, inscrição nos editais e sua possível aprovação. Então, após ser premiado, o trabalho, que já pode ter sido iniciado na pesquisa teórica e prática, continua seu caminho com a chegada de novos integrantes-colaboradores. Começam os improvisos dos atores-criadores, discussões das primeiras imagens, textos da dramaturgia, propostas espaciais, intervenções cênicas…  e todo material vai sendo compartilhado pelo grupo… quando é chegado um estágio, geralmente deflagrado pelo tempo de cronograma do projeto, a pessoa responsável pela dramaturgia deve propor uma estruturação inicial das ações, imagens e personagens propostos por todos, selecionando e excluindo material. 

O dramaturgo, Luis Alberto de Abreu, chama essa estruturação inicial de “canovaccio”, que é o roteiro sintéticos das ações na Commedia dell'Arte tradicional. 

A dramaturgia colaborativa é sempre provisória, instável e sujeita a modificações a partir do diálogo artístico e material, pois uma nova cena pode derrubar a anterior contemplada e novas propostas podem cair ou serem absorvidas. Isso significa um processo de múltiplas interferências.

Porém as interferências devem ser administradas na chave do respeito e alteridade de cada criador, pois estamos lidando com o esforço subjetivo e criativo de cada um e essa é uma parte sensível da pessoa. A crítica, que surge dos companheiros de trabalho, deve se esforçar para se concentrar nos elementos estéticos e procurar contribuir para a criação geral e não ser destrutiva, negativa e pontual. 

Falar dos trabalhos colaborativos, responsabilidade e contradições dos grupos com mãos centralizadoras.

 

Conclusões 

O trabalho da dramaturgia na escrita é um momento diferente daquele em que o texto vai ser recriado pelo grupo, com todas as interpretações e adaptações. As alteridades dos artistas têm que ser preservadas e respeitadas. As competências específicas levam tempo para se formar e manter a divisão do trabalho ainda é a melhor estratégia para produzir arte em coletivo e instigar o público com uma obra enigmática feita a muitas mãos, na qual a polissemia se faz presente e a contribuição vem de todos. O tempo do textocentrismo já passou, por mais que alguns autores, diretores e produtores tentem ressuscitar.  

 

Bibliografia

João Roberto Faria (Org). História do Teatro Brasileiro. Vol.2. Editora Perspectiva, Edições SESCSP, 2012.

Iná Camargo Costa. A hora do teatro épico no Brasil. Expressão Popular, 2016

Luis Alberto de Abreu. Processo Colaborativo: Relato e Reflexões sobre uma

Experiência de Criação. Cadernos da ELT - número 2, junho/2004

_________________. A Restauração da Narrativa. Publicado em 2000.

Silvia Fernandes. Grupos Teatrais – anos 70

Sábato Magaldi. Panorama do teatro brasileiro. Funarte, 1962

Décio de Almeida Prado. Teatro brasileiro moderno, Ed. Perspectiva, 1988

Renata Pallottini. Introdução a Dramaturgia. Editora Brasiliense, 1983

______________. O que é dramaturgia. Editora Brasiliense, 2005