Análise do
poema “Eu amo a noite” de Fagundes Varela (1841-1874).
Gravura de M. J. Garnier - GARNIER, M.J. Fagundes Varella. Rio de Janeiro (RJ): F.Briguiet & Cie. Editores, [189-?]. 1 des., pb. Disponível em: <http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/icon960828/icon960828_021.jpg>. Acesso em: 3 mai. 2015., Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=39935655
Por Rogerio Guarapiran
[POEMA]
Eu amo a
noite com seu manto escuro
De tristes
goivos coroada a fronte
Amo a
neblina que pairando ondeia
Sobre o
fastigio de elevado monte.
Amo nas
plantas, que na tumba crescem,
De errante
briza o funeral cicio:
Porque
minh’alma, como a sombra, é triste,
Porque meu
seio é de illusões vazio.
Amo a
deshoras sob um céo de chumbo,
No
cemiterio de sombria serra,
O
fogo-fatuo que a tremer doudeja
Das
sepulturas na revolta terra.
Amo ao
silencio do hervaçal partido
De ave
nocturna o funerario pio,
Porque
minh’alma, como a noite, é triste,
Porque meu
seio é de illusões vazio.
Amo do
templo, nas soberbas naves,
De tristes
psalmos o troar profundo;
Amo a
torrente que na rocha espuma
E vai do
abysmo repousar no fundo.
Amo a
tormenta, o perpassar dos ventos,
A voz da
morte no fatal parcel,
Porque
minh’alma só traduz tristeza,
Porque meu
seio se abrevou de fel.
Amo o
corisco que deixando a nuvem
O cedro
parte da montanha, erguido,
Amo do
sino, que por morto sôa,
O triste
dobre n’amplidão perdido.
Amo na vida
de miseria e lôdo,
Das
desventuras o maldito sello,
Porque
minh’alma se manchou de escarneos,
Porque meu
seio se cobriu de gelo.
Amo o furor
do vendaval que ruge,
Das azas
negras sacudindo o estrago;
Amo as
metralhas, o bulcão de fumo,
De corvo as
tribus em sangrento lago.
Amo do
nauta o doloroso grito
Em fragil
prancha sôbre mar de horrores,
Porque meu
seio se tornou de pedra,
Porque
minh’alma descorou de dôres.
O céo de
anil, a viração fagueira,
O lago azul
que os passarinhos beijam,
A pobre
choça do pastor no valle,
Chorosas
flôres que ao sertão vicejam,
A paz, o
amor, a quietação e o riso
A meus
olhares não têm mais encanto,
Porque
minh’alma se despiu de crenças,
E do
sarcasmo se embuçou no manto.
O
poema acima integra o livro “Cantos do êrmo e da cidade”(1869), último livro
publicado em vida do autor, o qual encontramos compilado em no volume das Obras
Completas, pela editora Saraiva (1962).
O
poema é uma exaltação apaixonada à noite, ele consiste em descrições que
remontam cenários estáticos com céleres eventos naturais e o tempo torna-se
mórbido, dilatado e reminiscente. A voz do eu-lírico vai apresentando imagens e
fenômenos naturais que se combinam com o cenário noturno e misterioso. O gênero
lírico tem um tempo suspenso e uma atmosfera onde paira uma voz que canta a
noite como reflexo da descrição de seu sentimento interior, podemos perceber isso
pela escuridão do ambiente, os cenários rochosos e desertos, os acontecimentos
tempestuosos da natureza e a presença da morte como expressão e vontade do
estado de alma. Tudo representado através de referências diretas e indiretas
que revela um desgosto pelo prazer que a vida serena e alegre pode causar. O eu-lírico
mostra que oportunamente, na infância, viveu docemente, porém agora, é tal sua
amargura que se encontra dominado e petrificado (como as rochas do cenário),
por isso mergulha nos meandros da noite venerando-a como uma amante e
encontrando nela sua expressão de grande metáfora do estado de alma.
O
título já define a preferência pelo turno notívago que é considerado no senso
comum o mais misterioso e marca uma entrega sentimental do “eu” à noite. Notável
é a repetição do verbo “amar” em primeira pessoa do indicativo presente em 11
aberturas das 15 estrofes do poema e tendo por objetos diretos toda espécie de sentimentos
próprios da soturnez. Em alguns exemplos: 1ª estrofe) “Eu amo a
noite”, 2ª) “Amo o sinistro”, 8ª) “Amo o pavor”, 14 ª)”Amo a tristeza”. Mas, ao
mesmo tempo, dentro do tema da entrega sentimental subjaz um tom explicativo, o
eu-lírico, só ama tudo aquilo porque seu seio é triste (verso 19), porque sua vida
é de ilusões vazia (v. 20), porque sua vida não tem mais sonhos (v. 35). A
conjunção subordinada sindética explicativa “porque” marca um semitom racional
em contraponto com o sentimentalismo maior do poema. A misteriosa, pavorosa e
fúnebre sensações que subsiste nas vagas da noite é mostrado por referências
diretas: “selo de mistério” (v. 4), “lampejos funéreos” (v. 13), “horas mortas”
(v. 14), “cemitério” (v. 16), “sombras” (v. 49), “caligem” (v. 50). Também,
indiretamente e de forma ostensiva pela analogia de imagens sinistras, cenários
desérticos e manifestações da natureza: “desertos quedos” (v. 3), “o abutre” (v.
10), “a voz medonha do caimã disforme” (v. 11), “sombria serra” (v16), “vastos
brejos” (v. 18), “tribos de corvo em sangrento lago”(v. 24), “chuvas
túmidas”(v. 25), “abismos”(v. 28), “floresta virgem”(v. 52), “Águas tôrvas de
ignotos rios”(v. 54), “negras rochas”(v. 55), “tufões bravios”(56). Muito
importante de salientar são os contrastes estabelecidos de forma explícita e
implícita, e em níveis textuais diferentes, contrastes que ressaltam a vertigem
que o ambiente noturno pode aclimatar: “[a noite] bela de um horror sublime”(v.
2), “as rosas brancas desabrochando à lua” (v. 34), são estes contrastes
explícitos; os implícitos aparecem de forma marcante no correr discursivo:
silêncio/silvos de bala (v. 17 e 23); nos tempos e sentimentos denotados:
presente desesperançoso e sombrio, e
passado alegre e iluminado; e também nas tonalidades contrastantes já
citadas: sentimental e racional.
No
âmbito lexiológico e sintático, o poema apresenta dificultadores de decodificação
de significados e estranhezas de significantes devido aos preciosismos
linguísticos românticos. No léxico encontramos arcaísmos – deleite de
românticos: “soledades” (v. 29) para designar lugar ermo, “veigas” (v. 41)
mesmo que várzea, “caligem” (v. 50)que é nevoeiro espesso, e o mais
interessante de todos “Sendal” (v. 45) encontrado apenas em dicionário
etimológico, refere-se a um tipo de tecido que encobre ou algo que oculta, que
impede a visão como um nevoeiro. É conhecido seu uso n’Os Lusiadas de Camões no
primeiro canto. Na sintaxe nada de hipérbatos complicadores, mas encontramos
orações distendidas que carregam muitos termos e encadeiam-se por enjabaments em muitas estrofes, o que
pode complicar o sentido fraseológico pela dispersão de longas sentenças em
períodos compostos. Quase todas estrofes são uma única frase em que aparecem
várias orações subordinadas. Note-se a estrofe 6 em que encadeiam-se três orações
coordenadas assindéticas à principal: “Amo o furor do vendaval que ruge / Das
asas densas sacudindo o estrago, / [1]Silvos
de balas, [2]turbilhões de fumo, / [3]Tribos de corvos...”.
Da
sonoridade expressiva – correspondência do som ao sentido – tiramos parcas
associações, mas suficientes para demonstrar escolha consciente de sonoridades.
É frequente o uso de aliterações da constritiva linguoalveolar surda e de
vibrantes velares e linguoalveolares sonoras para remontar a ideia de sussurros
e ruídos temerificantes típicos de uma paisagem sonora de noite assombrosa.
Observamos isso em versos como (v.50):
Amo o
(S)ini(S)tro (R)amalha(R) dos (C)edros
Através do qual percebe-se pela sibilação das
duas primeiras consoantes surdas a passagem do vento fazendo sussurrar os ramos
e a vibração da consoante marca o efeito desse vento que passou pelos cedros.
Causa e efeito demonstrado pelo uso de pares opositores surdo/sonoro,
constritiva/vibrante.
O
poema se organiza em 15 estrofes de 4 versos cada, e tem como esquema rítmico
uma curiosa estrutura: rima no nos segundos e quartos versos de cada estrofe. O
esquema métrico é de importância na construção do sentido, a saber: o estado de
noite infindo, infinito e absoluto que em que se encontra o eu-lírico afirmando
e reafirmando seu amor pela noite e clamando pelo descanso que a morte pode dar
é ajudado pela constância de metrificação. A regularidade rítmica dos versos
mostra-nos decassílabos sáficos onde encontramos os acentos tônicos, na métrica
silábica, nos segmentos 4 – 8 – 10. Veja exemplos:
(v.
1) Eu – a – mo_a – NOI – te – quan – do – DEI – xa_os – MON – (tes),
1
2 3
4 5 6
7 8 9 10
(V.
17) A – mo_o – si – LÊN - cio,_os – a – re – AIS – ex – TEN– (sos),
1 2
3 4 5 6
7 8 9
10
E.R.
10 (4-8-10)
Decassílabo sáfico é pertencente ou relativo
ao modo de composição de Safo, poetisa grega (séc. VII a VI a.C.); diz-se do
verso com acento na 4ª, 8ª e 10ª sílabas no decassílabo. Seu uso mais difundido
em língua portuguesa é n’Os Lusíadas de Camões. Também no romantismo é um
recurso usado largamente. A função expressiva do metro marcado serve para
ampliar as visões da noite e preservar a unidade do tema reinante e totalitário
pelo qual é tomado o “eu”. Esse reforçamento rítmico é elucidativo do sentido
circular que toma forma no poema. O ponto onde ele começa é o mesmo ponto onde
termina. O caráter estático, salvo alguns instantes de relâmpagos é característica
de estilo da época, assim como o apelo à natureza para expressar melancolias,
tristezas, desespero, vaguidão, etc. Assim, diz Bosi, comentando o Romantismo
temático: “o mundo natural encarna as
pressões anímicas. E na poesia ecoam o tumulto do mar, o ímpeto do vento e a
fixidez do céu, o terror do abismo e serenidade do monte.[1]
Interessa
também comparar o poema com outro texto de sua época: “Noite” de Gonçalves Dias,
que começa no mesmo tom: “Eu amo a noite solitária e muda”. Em Noite existe uma
rede de metaforizações que confere ao poema uma aura fantasmagórica e mística
profana. O poeta compara a fascinação da noite com a imagem de “formosa dona em
régios paços, / Trajando ao mesmo tempo luto e galas / Majestosa e sentida;” e
trabalha essa imagem de mulher nos seus detalhes. No ritmo, ele se apresenta
mais irregular, seu aspecto formal forte é a métrica variando em decassílabos e
sextinas o que confere andamento quebrante e solavancos que dá impressão de
sustos contínuos na leitura. O tom é noturno e moralista, mas há uma ênfase
forte nos aspectos da religião, tomando a noite como hora propícia à veneração,
pois é a hora do silêncio, do contato direto com a natureza : “Calada a
natureza, a terra, e os homens, / Subir as orações aos pés do Eterno / Para
afagar-lhe o trono”. Sem dúvida, “Eu amo a noite” de Varela tem interlocução com
o poema de Gonçalves, mas preserva mais a força rítmica e compõe cenários ainda
mais assustadores. Varela consegue construir um móbile mais fluido na leitura e
consegue intensificar a sensação de sofrimento irremediável do eu-lírico. O mais
marcante desse confronto é que, enquanto Gonçalves Dias traz uma exaltação
positiva da noite no sentido espiritual, elevando a noite à plenitude, Fagundes
Varela prefere uma exaltação negativa, o sentimento de destruição, de sentimento vertiginoso que
conduz ao desejo da morte.
Fagundes
Varela foi em si sua própria época, foi um romântico autêntico, filiando-se sem
pejo ao mais puro byronismo sombrio e ultrarromântico, expresso no desejo da
morte e ostentação da vida boêmia, aspectos mais latentes de sua obra. Também é
forte a influência aos românticos nacionais precedentes a ele como Gonçalves
Dias, Casemiro de Abreu e principalmente Álvarez de Azevedo, o qual continua a
sinuosa aventura dos sofrimentos sombrios do pessimismo e desejo da morte. O
poeta que foi na década de 1860 o mais lido, numa lacuna temporal entre Álvarez
de Azevedo ultrarromântico e Castro Alves condoreiro, ele apresenta
“decalques”, no dizer de Bosi, tanto da 1ª quanto da 2ª geração de românticos e
também acompanha a virada na vida política engrossando a fileira dos
descontentes com o IIº Império. Também comenta o crítico e historiador José
Veríssimo que ele “deixa-nos a impressão do já lido”[2].
Na sua biografia registra vida boêmia, o alcoolismo, aventuras românticas com
mulheres, sofrimentos e amarguras profundas, vida errante de um bom vivant
que viveu entre a cáustica cidade e o bucólico campo. Deixou obra extensa para
um escritor que morreu aos 33 anos.
O poema
é a própria noite romântica típica, a noite de uma geração que nela se deleitou
em amores, veneração, angústia e sofrimentos. Fagundes Varela apresenta o
pisado e batido cenário romântico de maneira vigorosa e como representação do descanso
dos tormentos da vida. Contém doses de clichês emblemáticos de sua época e uma
síntese das leituras de sua época, tratado com pessoalíssimo profundo e
originalidade. Representa mais de uma geração e não é menos que as obras que
representa, tem sua força própria num ritmo marcante que consegue montar uma
atmosfera sinistra e fúnebre.