Roteiro para Aula de Dramaturgia Brasileira –
Rogerio Guarapiran
Objetivo – modos de ver dramaturgia
Primeiro bloco, anos 40 a 60 (do teatro moderno
Nelson Rodrigues ao Seminário do Arena);
2º bloco, anos 70 e 80 (teatro coletivo e
ritual);
3º bloco, anos 90 e 2000 (teatro colaborativo e
multi-estéticas);
Fechamento, apontamentos, reflexão, bibliografia
e créditos;
Apresentação:
Olá, sou Rogerio Guarapiran, dramaturgo e músico.
Comecei a escrever em 1999, no teatro amador de Taubaté. Em 2006, me mudei para
São Paulo para trabalhar com grupos de teatro independente e me
profissionalizar.
Fui atraído pelo “teatro de grupo” que, desde o
final dos anos 90 e início dos anos 2000 apresentava peças significativas em
nível estético, político e com uma forma de produção coletiva que estava ligado
ao discurso do Teatro contra a Barbárie.
Movimento que ajudou a conquistar a Lei de Fomento
ao Teatro para a classe teatral, melhor política pública, ao meu ver, mesmo
restrita a um único município.
O discurso era contundente: Teatro não é
mercadoria! Deu-se importância ao processo de criação, à pesquisa continuada e
ao experimento cênico. Com o Fomento em ação, o grupo pode ser premiado, a
partir de um projeto de pesquisa com orçamento… o núcleo pode se dedicar
durante um tempo a um tema, através de um processo pedagógico, teórico e
prático que coloca todos os integrantes para criar.
Como resultado, o grupo pode apresentar um
espetáculo, entrar em cartaz e colocar a peça no repertório… ou manter a
característica inacabada de ensaio, processo aberto… ou simplesmente ficar com
a reflexão sobre a pesquisa.
Houve muitas mudanças e retrocessos culturais nos
últimos anos. E a desconfiguração da lei é um problema atual, inclusive o
conceito de teatro de grupo está em crise…, apesar de ser um dos mais longevos
movimentos artísticos que, ao meu ver teve origem nos grupos da década de 60 e
70 do século XX. O teatro de grupo é uma longa elaboração coletiva que
sobrevive aos assédios neoliberais da economia e resistência dentro da
sociedade ocidental, que preconiza o individualismo, a competição e o aumento
da produção de produtos sempre novos ad nauseam.
Eu sou formado nesse sonho de teatro de grupo,
pulando de coletivo em coletivo para somar minha força de trabalho, me tornei
um “trabalhador da cultura”, para riscar o chão da ideologia e da utopia ao
lado de companheiros e companheiras que almejam a mudança histórica, dentro do
campo progressista. Estou atrás de fazer um teatro de consciência e poesia, de
luta e contradição, para questionar o status quo e também ser respeitado dentro
dos coletivos, pela dedicação e seriedade do meu trabalho, como profissional de
dramaturgia.
Esse é o meu lugar de fala dentro do teatro. Ele
tem limites e, portanto não é a história universal ou a história total do
teatro brasileiro, desde Padre Anchieta, que me interessa… Não sou teórico e
nem pedagogo teatral, então proponho um olhar histórico a partir de fragmentos
que juntei na minha caminhada e histórias que ouvi e li, fazendo ligações
idiossincráticas… que me ajudam a compreender o porquê fui atraído por esse
tipo de teatro e como a forma de produção que os grupos em que estou inserido e
do nosso tempo histórico influencia minha criação.
Muitas vezes me acho limitado, subjetivamente, por
contradições pessoais ou técnicas, mas tento me manter consciente, pois a
maioria das dificuldades que enfrentamos são objetivas e interpessoais… por
isso devemos nos manter vigilantes e atentos para conseguirmos um entendimento
coletivo, principalmente se queremos produzir obras teatrais relevantes, pois a
obra teatral é sempre de muita gente que a faz.
Minha questão é como fazer teatro em coletivo e a
dramaturgia que me interessa é aquela que tem a dimensão coletiva como
experimento, seja no tema como na
forma.
Dentro dessa perspectiva quero apresentar, nessa
aula sobre Dramaturgia Brasileira, um recorte bem específico que contempla
minha pesquisa pessoal e um olhar para o “teatro crítico”, aquele que
problematiza a sociedade, suas relações de poder e sua própria linguagem.
Uso teatro crítico, mas podia ser “teatro político”
ou “engajado” de forma ampla, pois entendo que qualquer fazer teatro é
político, e deve ser mais ou menos “engajado” em qualquer forma de produção que
se dê, assim como qualquer relação humana é política e engajada (mesmo a
indiferença e o desprezo é engajado e político).
Mas o que determina meu interesse é como
dramaturgos e dramaturgas negociam sua criação em contato frequente com outros
artistas da cena, diretores, produtores, atrizes e atores, cenógrafos,
figurinistas, iluminadores e logicamente o público. Como se escreve
dramaturgia, pensando que há um sistema teatral-artístico-cultural, que sempre
está em crise na modernidade, simplesmente pelo fato de querer saber qual sua
utilidade, seu poder de transformação social e sua viabilidade
econômica.
Estou usando dois livros para essa exposição. O
segundo volume da “História do Teatro Brasileiro”, organizada por João Roberto
Faria, e escrita por vários pesquisadores. E o livro “A hora do teatro épico no
Brasil” de Iná Camargo Costa.
Através deles, vou apresentar um quadro que se
inicia no Seminário de Dramaturgia do Arena em 1958 até as experiências do
teatro colaborativo e as multilinguagens no primeiro decênio dos anos 2000.
Eventualmente vou me referir a dramaturgos e montagens, mas o foco não é
individualizar a questão seguindo os gênios e os mais afamados pela crítica,
mas seguir o movimento coletivo, as mudanças de tendências, movimentos e grupos
que imprimiram uma tendência e contribuíram para formar uma onda revolucionária
que chegou até nós em diferentes intensidades.
Bloco 1
Vou começar falando do teatro dos anos 40, sobre o
mito do modernismo na dramaturgia, e explorar alguns autores que conseguiram
contribuir com grupos e desenvolver linguagens autorais. Vou pontuando
produções até os anos 70, centrado no eixo São Paulo e Rio.
Então, o contexto agora acontece sobre o
efeito da Segunda guerra mundial e seu pós. Estamos sob um neocolonialismo
cultural e econômico norte americano que abriu e fechou nossa primeira janela
democrática, de 1945 a 1964. No início dos anos 50 são destacados 3 dramaturgos
modernizadores da linguagem, Nelson Rodrigues, Jorge Andrade e Ariano Suassuna.
Mas veremos lances apenas dos dois primeiros, por motivos de tempo e ligações
com fatos que quero ressaltar aqui. E também porque, Suassuna merece uma aula à
parte.
A obra de Nelson Rodrigues, que é considerada a
inauguradora do teatro moderno brasileiro, é a peça “Vestido de Noiva”, escrita
e encenada em 1943. Ela traz em si um complexo problema de valoração cultural
no Brasil. O teatro só se torna moderno quando um europeu está na direção, no
caso o polonês Ziembinski.
Um parênteses. Lembrando que “dramaturgia moderna”,
aquela que, para mim desafia a própria linguagem estabelecida e se mostra como
“radical” no sentido da palavra, ir até a raiz, é aquela que trabalha com as
linguagens consagradas e promove rupturas, inversões ou negações… nesses
aspectos a moderização da escrita para o teatro tinha começado a muito tempo no
Brasil, consciente ou inconscientemente… mas não havia condições objetivas,
como grupos teatrais independentes para realizar esses feitos estéticos no palco.
O dramaturgo Quorpo Santo, já no século XIX, pode
ser considerado precursor de modernos estilos, como o surrealismo, teatro do
absurdo e non-sense, através de uma linguagem confundida com patologia e
personagens precários… com os quais eu aliás me identifico muito… mas não
encontrou montagens em sua época e por quase 100 anos ficaram a ser
“descobertas”... e também com Oswald Andrade, o “modernista de 1922”, com seus
textos “irrepresentáveis”, já era um surrealistas antenado, produzindo textos
como, “A morta” e “O Homem e o Cavalo”, mas preconizou um teatro épico
(antes de Brecht aportar no Brasil), com “O rei da vela” que precisou de uma
geração posterior para ser considerada moderna.
Voltando ao problema do “Vestido de Noiva” de
Nelson, a peça foi montada pelo grupo Os Comediantes, formado em 1938, por
artistas amadores que já questionavam a forma de produzir o teatro hegemônico
no Rio de Janeiro. Formas como o teatro musical de Revista, o teatro burlesco
cômico, ou o teatro melodramático, utilizavam figuras como “o ponto”, aquele
cara que soprava o texto dentro de um fosso e não havia a função de “diretor de
teatro”, um artista que centralizaria um conceito de cena como unidade estética.
Havia “o ensaiador”, e o “repetidor”, figuras que eram, o dono da Cia ou seu
ator principal que treinava e distribuía os artistas pelo palco conforme
convenções.
Então, era o grupo Os Comediantes que já trazia uma
proposta modernizadora. Assim motivados, trouxeram um diretor de verdade!
Souberam de um polonês que estava fugindo para o Brasil, por conta da Guerra, e
foi contratado para a direção dos espetáculos. Ao mesmo tempo, a busca por um
autor desembocou em Nelson Rodrigues, que trazia um novo olhar, um olhar para o
“teatro de arte”... por mais que Nelson Rodrigues afirmasse em vida que seus
textos não tinham influência de nenhuma vanguarda… sua linguagem é facilmente
comparada com tendências do novo realismo dramático e psicológico
norte-americano, de Eugene O’Neill e Arthur Miller e o teatro expressionista
europeu… porém há de reconhecer um apelo popular brasileiro pela cômico e de
uma “visão carioca”.
Seria importante considerar o intento do grupo Os
Comediantes, dos seus integrantes como Santa Rosa e Brutus Pereira que tiveram
a sacada, em 1943, de misturar Ziembinski e Nelson Rodrigues para culminar numa
nova forma de produzir. Forma que já se consagrou na Europa… que consistia na
unificação dos elementos de cena: cenários, atuação, luz, som para
produzir uma estética relacionada e signos autorreferentes, atuando num texto
fragmentado, composto por planos diferentes da memória e uma trama cheia de lacunas
psicológicas… esses elementos consagraram o mito da modernização do teatro
nacional.
Outra obra de Nelson que vai continuar impactando o
teatro contemporâneo, inclusive lá na frente com Antunes Filho, mas ressalto
uma conexão entre sua obra “Anjo Negro”, escrita em 1946, pelo seu caráter de
discussão racial. Nelson escreveu Anjo Negro para Abdias do Nascimento, criador
do Teatro Experimental do Negro em 1946… O TEN se propunha a trabalhar pela
valorização social do negro, através da arte, educação e cultura. Mas “Anjo
Negro”, foi censurado por dois anos, não pela sua inovação de linguagem, mas
pelo fato da personagem, Ismael, o protagonista, ser negro. A peça só foi
liberada sob a condição de que a personagem negra fosse interpretada por um
ator branco, pintado de graxa, o famoso “black face”. Anjo negro foi encenada
em 1948, pela Cia Maria Della Costa.
Aproveito esse gancho para ressaltar a importância
de Abdias do Nascimento e questionar junto com o propósito do Teatro
Experimental do Negro, a qualidade e a quantidade de personagens negras nos
poucos textos da “História do Teatro Brasileiro”... são peças como “O demônio
familiar” e a “Mãe” de José de Alencar; “Os cancros sociais” de Maria Ribeiro,
“O escravocrata” de Artur Azevedo e as comédias de Martins Pena… nas quais o
negro aparece linguisticamente incapaz, de forma infantil e preconceituosa, nos
papéis cômico, grotesco, deformado, o ou na figuração muda.
Até Anjo Negro nenhuma dramaturgia brasileira
refletia a dramática situação existencial da pessoa negra, segundo o próprio
Abdias… mas infelizmente, a encenação do diretor Ziembinski preferiu sancionar
o racismo que a censura estatal recomendou, em prejuízo da discussão racial no
texto, somente para a peça entrar em cartaz no Teatro Municipal do Rio de
Janeiro.
Abdias em 1951 escreveu o mistério negro
“Sortilégio”, que foi proibida pela censura por “imoralidade”. Durante vários
anos. Só em 1957, o TEN apresentou Sortilégio no Teatro Municipal do Rio. A
peça mostra os choques das relações raciais, quebrando a ideia de democracia
racial iniciada nos anos 30, e reafirma a origem africana contra a sociedade
branca dominante. Inaugura no teatro uma estética afro-centrada, conceito
estético que nos últimos 10 anos vem sendo atualizada pelos coletivos negros
atuais. As estéticas dos rituais de terreiro, as mitologias orixás, a
corporalidade das danças… remontam a um certo afro-realismo afro ou
afro-futurismo diaspórico importante.
Pulamos agora para a contribuição de Jorge Andrade,
que se deu mais fortemente nos anos 60. Sua contribuição se faz pelo pensamento
que o dramaturgo sempre escreve uma única peça, ou seja, a ideia da obra do
escritor é uma obsessão em torno de temas limitados. Suas peças possuem
conexões de temas e um projeto de entender o homem brasileiro, escreve “dramas
históricos” e psicológicos tentando demonstrar condicionamentos sociais com
consequências para o bem e para o mal. As peças “A Moratória”(1955), “Pedreiras
das Almas”(1958) e “Veredas da Salvação” (1964), além de formarem uma trilogia,
marcam uma trajetória de ascensão de um dramaturgo dentro de companhias de
teatro, o modo de produção dominante no teatro dos anos 50. A primeira peça, “A
Moratória” é montada pela Cia Maria Della Costa, com direção de Gianni Ratto, e
Fernanda Montenegro no elenco. A peça trata de forma dramática e relações
naturalistas, a decadência da elite agrária que dava lugar à elite industrial.
Um drama burguês bem escrito nos cânones ocidentais, com apresentação de
personagens, desenvolvimento do conflito, clímax e desfecho.
A montagem chamou atenção do principal concorrente
na cidade de São Paulo. O Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC. Jorge Andrade
tem uma ascensão como autor e pensador no sistema cultural e empresarial, e
escreveu sua segunda peça, “Pedreiras da Alma”, baseada na tragédia Antígona e
nas discussões filosóficas da década de 50, sobre a noção de “novo homem”. Um
conceito brasileiro da valorização do indivíduo como fonte de transformação da
história, baseado no conhecimento das raízes nacionais, uma busca idealizada do
‘‘autêntico homem do povo” que aspira uma vaga ideia revolucionária.
Essa junção de modelo histórico e conceito
filosófico resultou numa escrita cênica, um texto sem rebuscamento literário. E
a montagem pelo TBC possibilitou a Jorge Andrade uma continuação e
aprofundamento da sua atividade, dimensões importantes para a dramaturgia
autoral.
O autor pode desenvolver reflexões sobre o
exercício de escrita, sistematizações, e regras de procedimentos de composição
para a dramaturgia, ou seja, pensar uma pedagogia, ainda que normativa para a
dramaturgia brasileira. Dentro do TBC havia encontros teóricos e cursos que
estimulavam novos artistas. Jorge Andrade e Décio de Almeida Prado regiam esses
encontros e um assíduo ouvinte e aprendiz teve a chance, anos depois,
igualmente como Jorge de Andrade, de ascender na firma TBC e tornar-se diretor
e montar um texto do já consagrado dramaturgo. Antunes filho dirigiu em 1964, o
Veredas da Salvação, naufragando por completo o TBC.
Montagem de Antunes, fez um trabalho, em termos
contrários ao da “empresa de teatro”, dilata o tempo de ensaio em meses
intensos de trabalho de preparação dos atores, com laboratórios, exercícios
corporais e reuniões discussão de textos sociológicos e filosóficos paralelos
aos temas da peça para atingir uma recriação naturalista de um ambiente rural
tomado pela histeria religiosa.
A peça foi um fracasso, mas o processo se tornou um
marco para o teatro de pesquisa.
Bloco 2
Agora vou explorar a trajetória do Teatro de Arena
que foi formado em 1953, como uma resposta ao modo de produção das Companhias
de teatro de São Paulo, principalmente ao modelo empresarial do TBC.
Zé Renato, seu fundador, deu o nome de Arena, que
está ligado à forma do espaço de encenação já como uma forma de mostrar a ideia
de renovar o fazer teatral pela espacialidade… e uma nova forma de se
relacionar com o público… uma preocupação política, mais do que
econômica.
Em 1955, juntam-se a ele uma turma oriunda do
Teatro Paulista de Estudantes, artistas da juventude comunista do PCB, como
Vianinha e Guarnieri que estavam nessa leva. E nesse encontro o mesmo anseio de
mudar a relação frontal, o distanciamento, a frieza e a forma de representação
em relação ao público.
O CPC, Centro de Cultura Popular, que não está no
foco desta exposição, deriva desse entroncamento entre estudantes de teatro e a
encruzilhada de se profissionalizar no modelo de Companhia de teatro ou
continuar na militância. (Aqui vale outra aula!)
As primeiras peças do Arena são de autores
estrangeiros, competindo com o TBC, mas a organização interna do Arena se
opunha aos modelos empresariais, era horizontalizada nas de tarefas de
zeladoria do teatro e nas discussões políticas internas. Isso resultava em
formas teatrais… como quebra da ilusão da quarta parede, com a presença de todo
elenco no palco enquanto a peça intimista se desenrola, falas de intervenção e
comentários.
Essas atitudes levou os integrantes até a eminente
preocupação de se levar à cena a realidade brasileira na dramaturgia e realizar
um trabalho de pesquisa continuada. Surge o Seminário de Dramaturgia, em 1958,
para estimular essa dramaturgia nacional.
Esta iniciativa foi desenvolvida pela influência de
Augusto Boal, que tinha voltado dos Estados Unidos, com sua formação dramática
no Actors Studio. Sua entrada no Arena impulsionou novas pesquisas através dos
estudos das técnicas de playwright, que são métodos de construção de
narrativas, desenvolvidas para a indústria cultural.
O Seminário de Dramaturgia foi um espaço para o
elenco do teatro de Arena desenvolver textos originais sobre a realidade
brasileira, a partir de leituras e discussões sobre a criação de cada autor,
com o propósito dos autores absorverem a crítica e desenvolverem versões e mais
versões de seus textos. Este sistema de criação e crítica é polêmico, mas ao
mesmo tempo central para essa demonstração de que a dramaturgia é construída
por várias pessoas. Uma intromissão e interação no nível nascente de um texto,
no momento em que ele é somente texto… é diferente do texto integral do
dramaturgo levado à cena e sofrendo a crítica teatral sobre o produto
final.
A peça “Eles não usam Black-tie” de Gianfrancesco
Guarnieri foi escrita antes do Seminário e serviu como modelo nas discussões e
orientações que ocorreram no pequeno período de funcionamento do Seminário. A
montagem do Arena, em 1958, deu novo fôlego ao Arena, devido ao sucesso de
público, que se reconheceu na realidade brasileira que subia ao palco, tanto
como linguagem, quanto no conteúdo. A representação da classe trabalhadora e as
questões sociais urbanas apareciam de maneira inédita entre nós.
Aqui cabe a reflexão de Iná Camargo Costa que
aponta uma contradição entre a forma dramática da peça de Guarnieri, que
acompanha o conflito no interior de uma família que mora na favelados. Pai e
filho são operários da mesma fábrica, quando explode uma greve e os impasses
que ela provoca estremece as relações familiares e comunitárias. Os diálogos e
cenas que evoluem linearmente no tempo, segundo Iná Camargo não conseguem
representar o tema principal da greve, um conteúdo social que exigiria uma
abordagem épica, ou seja uma forma de representação não naturalista, porém
ainda no campo realista para dar conta das complexas visões e relações que
estão envolvidas na construção de uma greve, como o conceito de lutas de classe
e conflito social expandido. Sua afirmação é contundente: “greve não é assunto
de ordem dramática”!
Isso abre um ponto fundamental para toda produção
teatral que quer entender a sociedade e tem pretensão de intervir nessa mesma
realidade. A discussão entre forma e conteúdo aparece datada nas análises
estéticas, mas tem consequências as análises éticas de como como e porque
reproduzir conflitos sociais no palco e como certas formas históricas contém
ideologias impregnadas desde o tempo histórico em que foram
desenvolvidas.
O drama, é uma forma identificada com as revoluções
burguesas e individualistas do fim do século XVIII, na Europa, na esteira da
revolução industrial que escravizava meio mundo afora… uma classe social de
comerciantes e negociadores que ascendeu economicamente e queria se ver no
palco com a emancipação de seus problemas privados e valores interpessoais como
afirmação da vontade individual e conflito subjetivo. Várias descobertas e
inovações começara a brotar na cena, tais como diálogos interrompidos, pensamentos
incompletos, falta de palavras diante de emoções profundas e outros mecanismos
que tentavam imitar a vida de determinada classe social.
O teatro épico a que se refere Iná, sendo o mais
apropriado para temas sociais é igualmente uma reformulação e agrupamento de
várias técnicas de narrar o contexto maior em torno de um conflito social e não
individual. Bertolt Brecht é quem sistematiza e conceitua esses apanhados dando
formas aos conceitos, de efeito de distanciamento, saltos e retrocessos
na narrativa, comentários irônicos sobre os contextos das cenas e utilização da
música como expediente narrativo... São algumas das ferramentas épicas que vão
aparecer com maior consciência na dramaturgia brasileira, conforme a chegada,
recepção e estudo das obras do dramaturgo alemão no Brasil, coisa que se deu ao
longo dos anos 60, adiante.
Continuando com a experiência do Seminário de
dramaturgia, a peça “Chapetuba Futebol Clube”, de Oduvaldo Vianna Fillho, o
Vianinha, foi o primeiro resultado de autoria que passou pelos crivos de seus
pares e foi encenada em 1959. A partir daí, o Arena consolida uma
“nacionalização da dramaturgia”, mas seu autor apontou uma preocupação
excessiva em radiografar e fazer documentos da realidade brasileira na ótica de
sofrimentos individuais que mantinha uma contradição de apresentar para um
público pequeno-burguês, o produto mercantilizado da pobreza estética da
cultura popular. Vianinha se encontra num beco sem saída dentro de sua proposta
revolucionária de
teatro.
Na esteira da análise de Iná Camargo, destaco a
montagem da peça “Revolução na América do Sul” de Augusto Boal, em 1960. Ela
encerra o curto ciclo do Seminário de Dramaturgia e surge como uma forma
limite, sobre as próprias receitas de boa composição que eram buscadas no
Seminário. Podemos dizer que Boal como um professor era um aluno
indisciplinado, produziu uma escrita anti-modelo naturalista e fora das medidas
de unidade de tempo, espaço e carater. Trocou a fórmula dramática que estava
nas últimas obras do Arena por uma série de quadros farsescos e uma dramaturgia
épica, misturada com teatro de Revista. O enredo é bem direto, uma personagem:
José da Silva, um estereótipo do trabalhador pobre, espoliado e explorado por
todos os lados, não adquire consciência e foge dos modelos positivos que
estavam nas outras peças.
A peça traz uma elaboração do épico brechtiano com
pitadas de sátira do baixo cômico resultando em confusão e desnorteamento entre
as cenas e seu tratamento como forma é experimental e político, prenunciando a
fragmentação da esquerda, dificuldades de articulação e o perigo da
contrarrevolução conservadora que ia desembocar no golpe de 1964.
Bloco 2
Nesse segundo bloco, vou examinar mais duas
experiências cênicas que podem ser consideradas dramaturgia coletivas, pois são
escritas envolvidas num processo maior que buscar soluções de como montar um
texto pronto de gabinete. Mas agora temos dramaturgias que começam a se
conformar dentro dos processos de montagem. O ciclo das peças históricas,
“Arena conta…” Zumbi, Tiradentes e Castro Alves, e as peças do Teatro Popular
União Olho Vivo, na passagem dos anos 60 e 70.
E vou me referir rapidamente sobre o “Rei da Vela”
do Teatro Oficina como experiência que muda o paradigma de composição com
procedimentos carnavalescos e rituais na forma política. E depois daremos um
salto mortal para as experiências do teatro colaborativo.
A série “Arena Conta…” foi desenvolvida a partir de
1965, com Arena conta Zumbi, texto de Guarnieri e música de Edu Lobo. Está no
processo inicial de resistência à ditadura, onde há pouco havia estreado o show
Opinião, e a estética do musical como enfrentamento e disparador de mensagens
de protesto foi um importante mecanismo de linguagem para o teatro. A mensagem
através de Zumbi era a da organização da luta armada para tentar barrar os
desmandos da ditadura. A estrutura da peça era declaradamente épica, assim como
o cenário utilizado, um tapete vermelho, que coloca os atores num lugar de
auto-crítica deslocada, como se fossem estudantes da elite branca intelectual
discutindo a situação política nas casas abastadas de seus pais e utilizando a
história da resistência negra para falar da ditadura. Na linguagem escrita, as
narrações são explícitas sobre o desenvolvimento do enredo, não se escondia
quais seriam os movimentos das cenas, e os diálogos apenas redundavam a questão
política.
O ciclo Arena conta… desenvolveu uma série de
mecanismos épicos para o teatro brasileiro, como as narrações, os rodízios de
papéis entre os atores e atrizes, utilização da música como parábola e
narrativa, e o sistema coringa. Esses mecanismos tiveram uma elaboração teórica
e foram expressos por Boal posteriormente.
A experiência de Rei da Vela, montado pelo teatro
Oficina e direção de Zé Celso, em 1967 vem selar a desestruturação do caminho
realista/naturalista do drama para colocar-nos no caminho de uma dramaturgia de
invenção, radicalmente enigmático, com textos que não expressam mais teses, nem
panfletos, nem utiliza o épico como forma de conscientização política…, mas um
texto que se coloca numa dialética negativa, que se desdiz e se contraria.
Assim é o Rei da Vela, que expressa as relações familiares da burguesia
nacional, mas em tom de deboche e desbunde. Assim foram as descobertas das
criações realizadas pela encenação que realizou colagens entre elementos
diferentes, carnaval, ópera, tropicalismo e as manifestações corporais
libertárias elevou a cena para um rito de êxtase dos sentidos. A
redescoberta de Oswald como dramaturgo relevante demorou para encontrar um
teatro feito em grupo, onde a radicalidade da cena pode resultar numa espécie
de atualização do manifesto antropofágico colocado em prática.
Agora, a experiência do Teatro Popular União e Olho
Vivo, surgido em 1966, que dissemina o trabalho coletivo na construção da
dramaturgia - a criação coletiva que será tendência nos anos 70 e 80 - mas o
TUOV guarda uma especificidade de ter uma norma ética de trabalho: todas as
suas peças devem ser sobre temas brasileiros! E mais, temas que contemplem a
participação popular. Pois o compromisso com as plateias populares se faz na
prática e não mais no discurso. O grupo inicia um trabalho de ir até os bairros
periféricos e levar teatro como um meio de iniciar discussões públicas entre a
comunidade e refletir sua própria condição. Ao mesmo que apresenta o teatro
pela primeira vez a um imenso público que estava excluído do aparato cultural
da cidade. É um tipo de disputa de consciência política que não superestima e
nem subestima a capacidade do público popular.
Com César Vieira à frente dos trabalhos de escrita,
o grupo desenvolveu ao longo dos seus primeiros 30 anos, procedimentos
dramatúrgicos que são pouco divulgados ou trabalhados fora do grupo, talvez
pela especificidade ou puro desconhecimento. O grupo se organiza por
assembleias e decide por consenso, através de discussões. Por esse
processo escolhe o tema a ser realizado a encenação, estabelecem-se a
fase das pesquisas, improvisações de cenas e a confecção de fichas dramáticas,
um formulário em que cada integrante anota ideias de cenas, imagens, músicas
sobre o tema. Essas fichas dramáticas são recolhidas pela comissão de
dramaturgia e elencadas para se transformar em um roteiro preliminar, sempre
discutido em grupo a cada passo. É um processo exaustivo e de intenso
debate.
A características das peças, tinham que ser
maleáveis para se apresentar em locais não apropriados para o teatro de palco,
então o teatro de rua e as linguagens populares como o circo, o carnaval, as
danças dramáticas populares: bumba, meu boi… sempre eram utilizadas para
contar a história de conflitos sociais.
Para fechar esse bloco, resumo alguns procedimentos
para um trabalho coletivo que vão estar como paradigmas para os grupos de
teatro:
1. investigação;
2. elaboração do texto com respectiva análise
crítica;
3. montagem que desenvolve e complexifica o texto;
4. síntese do espetáculo feita em relação com o
público.
Bloco 3
A dramaturgia colaborativa surge das experiências
da criação coletiva dos grupos da década de 70 e vem se desenvolvendo no
interior de cada coletivo, processos em que todos os integrantes participavam
da criação do espetáculo, com fronteiras permeáveis entre a divisão de
trabalho, hierarquia horizontal e resultados estimulantes que diferiam do
teatro comercial e auto alimentaram os coletivos, a continuar na busca de novos
processos.
O teatro de grupo dos anos 90 apresenta um discurso
crítico que aponta para a histórica falta de políticas públicas de fomento
permanente para o teatro. Em São Paulo, organizam-se os coletivos e fortalecem
a Cooperativa de Teatro para discutir mecanismos de leis de incentivo à cultura
e editais, que são hoje as principais alternativas para os grupos
independentes. Mas, o perigo é sempre os grupos ficarem reféns ou o gargalo
apertar pelo aumento de demanda crescente. O dilema fundamental são as comissões
de seleção estabelecerem parâmetros de criação cada vez mais restritos, de
contrapartidas e restrição de tempo de criação, impondo uma lógica
mercadológica, que condiciona a elaboração de projetos e seus resultados.
O Teatro da Vertigem, em São Paulo, dirigido por
Antônio Araújo, estabeleceu uma referência na busca de novas relações
colaborativas entre seus integrantes, com o texto e a cena, do teatro com os
espaços de representação e propondo novos olhares do público. A trilogia de
trabalhos colaborativos, foi iniciada em 1992, com o espetáculo, O Paraíso
Perdido, realizado na Igreja Santa Ifigênia, teve a participação do dramaturgo
Sérgio de Carvalho.
No ano de 1995, estreou O Livro de Jó, num Hospital
abandonado, com a participação do dramaturgo Luis Alberto de Abreu.
E no ano 2000, estreou Apocalipse, num antigo
Presídio, com dramaturgia de Fernando Bonassi.
As experiências citadas foram acompanhadas de uma
cena de grupos importantes não só na cidade de São Paulo, mas em todo país, mas
estes três trabalhos ecoaram mundialmente, projetando nossa dramaturgia e o
espetáculo teatral como um todo com vivacidade. Não há uma linguagem artística
principal que se definiu anteriormente na confecção do espetáculo, não é o
texto, nem a atuação, nem a encenação, nem a cenografia ou outro criador
preponderante, mas a totalidade do fenômeno teatral inscreve sua própria história
e a maneira de se relacionar com o público.
A dramaturgia colaborativa surge em conjunto com o
pré-trabalho do grupo, que consiste, desde a conceitualização do projeto
cultural, definição de tema, escrita do projeto, inscrição nos editais e sua
possível aprovação. Então, após ser premiado, o trabalho, que já pode ter sido
iniciado na pesquisa teórica e prática, continua seu caminho com a chegada de
novos integrantes-colaboradores. Começam os improvisos dos atores-criadores,
discussões das primeiras imagens, textos da dramaturgia, propostas espaciais,
intervenções cênicas… e todo material vai sendo compartilhado pelo grupo…
quando é chegado um estágio, geralmente deflagrado pelo tempo de cronograma do
projeto, a pessoa responsável pela dramaturgia deve propor uma estruturação
inicial das ações, imagens e personagens propostos por todos, selecionando e
excluindo material.
O dramaturgo, Luis Alberto de Abreu, chama essa
estruturação inicial de “canovaccio”, que é o roteiro sintéticos das ações na
Commedia dell'Arte tradicional.
A dramaturgia colaborativa é sempre provisória,
instável e sujeita a modificações a partir do diálogo artístico e material,
pois uma nova cena pode derrubar a anterior contemplada e novas propostas podem
cair ou serem absorvidas. Isso significa um processo de múltiplas
interferências.
Porém as interferências devem ser administradas na
chave do respeito e alteridade de cada criador, pois estamos lidando com o
esforço subjetivo e criativo de cada um e essa é uma parte sensível da pessoa.
A crítica, que surge dos companheiros de trabalho, deve se esforçar para se
concentrar nos elementos estéticos e procurar contribuir para a criação geral e
não ser destrutiva, negativa e pontual.
Falar dos trabalhos colaborativos, responsabilidade
e contradições dos grupos com mãos centralizadoras.
Conclusões
O trabalho da dramaturgia na escrita é um momento
diferente daquele em que o texto vai ser recriado pelo grupo, com todas as
interpretações e adaptações. As alteridades dos artistas têm que ser
preservadas e respeitadas. As competências específicas levam tempo para se
formar e manter a divisão do trabalho ainda é a melhor estratégia para produzir
arte em coletivo e instigar o público com uma obra enigmática feita a muitas
mãos, na qual a polissemia se faz presente e a contribuição vem de todos. O
tempo do textocentrismo já passou, por mais que alguns autores, diretores e
produtores tentem ressuscitar.
Bibliografia
João Roberto Faria (Org). História do Teatro
Brasileiro. Vol.2. Editora Perspectiva, Edições SESCSP, 2012.
Iná Camargo Costa. A hora do teatro épico no
Brasil. Expressão Popular, 2016
Luis Alberto de Abreu. Processo Colaborativo:
Relato e Reflexões sobre uma
Experiência de Criação. Cadernos da ELT - número 2,
junho/2004
_________________. A Restauração da Narrativa.
Publicado em 2000.
Silvia Fernandes. Grupos Teatrais – anos 70
Sábato Magaldi. Panorama do teatro brasileiro.
Funarte, 1962
Décio de Almeida Prado. Teatro brasileiro moderno,
Ed. Perspectiva, 1988
Renata Pallottini. Introdução a Dramaturgia.
Editora Brasiliense, 1983
______________. O que é dramaturgia. Editora
Brasiliense, 2005