sexta-feira, janeiro 03, 2025

Salvar o Fogo de Itamar Vieira Junior.

 


Por Rogério Guarapiran

O tema dos indivíduos contra a sociedade se impõe como grande tema. Três personagens se destacam na narrativa de uma família de pessoas descendentes de indígenas e afro diaspóricos, o Menino Moisés, Luzia do Paraguaçu e Maria Cabloca. O cenário é a Tapera, uma comunidade no interior sul do Estado da Bahia, uma comunidade rural e ribeirinha à beira do rio Paraguaçu que é dominada por um mosteiro de religiosos católicos. A Tapera é uma personagem que assume desde o início um antagonismo opressor e através do qual se desencadeia o recorte do drama a ser encarado pelas personagens, pois são dois os motivos que desencadeiam os pontos de conflito. Um é a partir da mácula coletiva que atinge Luzia, na sua passagem da infância para a vida de menina-mulher, e o outro, é a violência sofrida pelo Menino no interior do mosteiro, quando ainda era criança.   

Os pontos de vista da narrativa são diversificados e experimentais, dois personagens em primeira pessoa, o Menino narra e conduz a primeira parte: A vingança Tupinambá e a segunda parte fica ao cargo da Luzia do Paraguaçu (mesmo nome do subtítulo do capítulo). Ambos narram um trecho de suas vidas, mesclando memórias particulares com memórias de familiares próximos e antepassados distantes, num estilo de realismo psicológico e fantástico que tenta simular a limitação do indivíduo de entender a si mesmo e os outros, mas representando a contradição de uma personagem complexa e inconsciente,  mesmo quando o leitor coloca em suspeita a capacidade elaboração sintática e argumentativa das personagens, estranhando algumas construções linguísticas demasiadas “sociológicas” para o contexto. O limite do nosso pré-conceito e pré-julgamento sobre o que uma personagem de origem simples, analfabeta ou de baixa cultura letrada pode pensar, elaborar, agir e sentir é todo o tempo confrontado com a ousadia de Itamar de seguir com o realismo quase mágico, fantástico e ancestral sobre figuras que historicamente foram excluídas e silenciadas e até pouco tempo eram impensadas como protagonistas de um romance. Já o prólogo e metade final da narrativa foram escrito em terceira pessoa, é o narrador onisciente, com mais recurso linguístico e sociológico que assume a condução, mas absorve a simplicidade e agudeza das personagens, o autor-narrador entrelaça a trama em aberto pelas duas personagens jogando com tempos do presente e passado, lançando visões míticas e ancestrais que apenas são intuídas pelos personagens, e principalmente organizando a raiva dos protagonistas “despossuídos” contra as injustiças e violências dos “donos de tudo”.  

O livro tem um estilo de escrita direto, com frases curtas, palavras de fácil decifração – são poucas as vezes a que se recorre ao dicionário. O autor utiliza o dialeto popular da região sul da Bahia de forma estratégica para dar uma cor local, sem preciosismo e hermetismo linguístico. De forma bem pensada e dosada adota uma preocupação com linguagem popular colocando alguns degraus de análise social, antropologia, poesia e academicismo. Essa qualidade de misturar vozes e profundidades de visões faz prender o interesse do leitor, que é surpreendido com cenas fortes de vários tipos: violência física e sexual, violência simbólica e racismo, até a mais banal ida ao banheiro se torna um ato de literário importante na trajetória da personagem. A família tronco da história é uma síntese das tensões sociais pela ocupação da terra, tensões raciais e religiosas no Brasil. Eis alguns exemplos: os filhos, assim como o pai, muito cedo migram para outras regiões em busca de sobrevivência. A mãe tenta introjetar nas filhas o seu desejo de embranquecer as gerações, e a avó, que era índia, transmitiu os últimos segredos dos encantados da mata, mas esses conhecimentos tem que ser abafado pela intensa vigilância católica do local. Em todo romance há uma ênfase nas sensações corpóreas das personagens, um entendimento tácito da vida, sentido na transformação da passagem do tempo, na memória do corpo, na deformidade, no gestual rude e sem afeto, na violência, enfim, tudo que que se refere aos corpos, à terra e ao meio ambiente é muito eloquente. O fogo é a simbologia central, é uma ligação com a sociedade indígena Tupinambá que são os nativos daquela região empobrecida pelo colonialismo. Luzia está espiritualmente ligada ao poder do fogo, é uma chama ambulante e ao mesmo tempo uma ameaça para o povo da Tapera. Juntamente com o rio Paraguaçu que se torna a metáfora da vida com a cena do parto inicial, o fogo liga todos os acontecimentos trazendo a morte e renovação. 

Minha impressão final, que está longe de esgotar as possibilidades do livro, é que Itamar combina a forma de contista em capítulos breves e dinâmicos com uma narrativa fluida que conecta acontecimentos através de triangulações de pontos de vista, uma situação importante tem mais de um olhar se detendo e devolvendo isso em forma de conflito interno e externo. O dialogismo entre as personagens é menos interessante do que a polifonia que trazem em si ao vivenciar a corrente dos acontecimentos. A força do livro reside nos pontos de vistas e subjetividades inusuais e humildes, que historicamente aprendemos a relegar à figuração, ao segundo plano, ao servilismo, mas que na obra se tornam atores e mestres do próprio destino, sem tornar fácil ou ilusório o caminho da luta diária pela sobrevivência.